A
manhã chegou em Keraz sem a presença do sol. Balgata
deixara a cargo de Riderth organizar a fuga dos dois grupos pela
passagem da adega. O terceiro grupo estaria a cargo do último
capitão e sairia a campo aberto. Mesmo após a divisão,
algumas crianças e idosos ainda ficaram para trás,
fazendo parte do grupo que cumpriria o papel de isca. Seridath,
Balgata e os demais estavam parados no centro da aldeia, diante uma
pilha de madeira onde os corpos das vítimas estavam dispostos.
Urso Pardo, coberto por um manto de peles, havia sido colocado ao
lado de Murrough, cujo corpo já estava parcialmente queimado e
fora identificado por Balgata pela espada que segurava. Lá
também estava Aleigh, que morrera poucos minutos antes.
Seridath, Lucan e o anão Uri foram os únicos a verem o
corpo dilacerado do velho andarilho. O cavaleiro havia providenciado
para que ninguém mais visse o estado deplorável que
estava o corpo de Urso Pardo.
Ao
redor dos três líderes, os cadáveres dos demais
guerreiros e camponeses estavam dispostos de forma assimétrica.
Foi tudo feito às pressas, pois todos temiam que os mortos
entre seus próprios companheiros pudessem despertar. Seridath
sentia esse medo permeando o fôlego de todos os vivos ali
presentes. Os arqueiros prepararam as flechas incendiárias.
Balgata daria a ordem de disparo que poria em chamas aquela
gigantesca pira fúnebre. O capitão ainda hesitou. Nesse
instante, um gemido forte e sofrido surgiu dentre os corpos. Aleigh
gemia e ao seu gemido foram acrescidos outros. O capitão
recém-falecido levantou-se de chofre, com o rosto desfigurado.
Olhou ao redor e deu um berro irracional.
– Disparar!
– gritou Balgata, com a voz engasgada.
As
flechas incendiárias atingiram os corpos, que estavam
encharcados de uma substância especial, fabricada pelos anões.
Instantaneamente, a pira incendiou-se, cessando os gemidos daqueles
que deveriam estar em paz. Os vivos permaneceram em silêncio,
observando fixamente os corpos a arderem. Pareciam fascinados pelo
fogo. Balgata quebrou o silêncio.
– Andem,
seus cães de Nibala! – bradou o último capitão.
– Querem ficar nesta fossa podre pra sempre!? Vamos dar início
à retirada!
Até
mesmo ele estava surpreso com seu linguajar. Parecia que o sangue de
seus antepassados começava a despertar nele um outro homem.
"Que seja!" pensou ele, cuspindo no chão, como se
expulsasse de si mesmo o último resquício de nojo.
Logo
o grupo de sobreviventes pôs-se em marcha. Os comboios eram
guiados por três auxiliares, remanescentes da comitiva de
guiadores e cozinheiros que saiu de Sathal, quase um mês atrás.
Duas carroças levavam os mais debilitados. Alguns, feridos
pela maligna maldição, já mostravam sinais de
fraqueza e da doença que lhes tiraria a vida, transformando-os
em mortos-vivos. Bem à frente do comboio ia o grupo de
defensores, escalados para o primeiro embate caso o inimigo surgisse
em alguma emboscada. Balgata guiava o grupo, formado por 6 anões,
9 arqueiros, 18 guerreiros e 20 aldeões assustados. Na
retaguarda havia um grupo menor, composto somente por 5 arqueiros e 7
camponeses. Exceto crianças e velhos, os outros foram
obrigados pelo capitão a carregar algum tipo de arma. Todos
que pudessem deveriam lutar pela sobrevivência do grupo. O
resto dos homens da Companhia estavam entre os outros dois grupos,
que escaparam pela passagem particular do prefeito Denor.
Aldreth
era um dos arqueiros destacados para ficar na retaguarda. Tentava
distanciar-se de Seridath, mas não se considerava digno de
escapar com os outros, pela passagem. Merecia arriscar a vida,
fazendo parte do grupo de isca. O jovem ainda não conseguia
entender como ele e os outros arqueiros de vigia não
conseguiram ver os cuspidores de dardos antes do início do
ataque. Fora surreal demais assistir a campina de repente encher-se
de criaturas hostis, enquanto eles escondiam-se atrás da
paliçada e as pessoas da aldeia morriam. Por tudo isso,
Aldreth temia ainda mais Seridath e procurava evitá-lo a todo
custo. Ele era o único que sabia a verdade. O único que
vira homens que ele mesmo havia enterrado levantarem-se como
criaturas malditas. E não bastasse isso, aquele homem maligno
o havia condenado a conviver com as imagens que o atormentavam.
Balgata
também não alimentava os melhores sentimentos por
Seridath. O capitão desprezava o insolente rapaz que portava
aquela estranha espada e agia como se o mundo todo girasse ao seu
redor. Algo dizia a Balgata que havia uma sinistra ligação
entre as ações de Seridath e a misteriosa salvação
em Keraz. Não havia provas disso, mas o capitão
considerava que essa idéia vinha de sua "intuição
de soldado", que raramente falhava. Mas o que deixava aquele
grande homem fulo da vida era ver o rapaz agir como se fosse um
herói, tomando a frente do grupo, sedento por mais lutas e
sangue. Enquanto eles andavam cautelosos e estudando o terreno,
Seridath adiantava-se, como se não houvesse problema em
enfrentar todo um pelotão de zumbis.
Seguiram
por uma trilha pouco usada, conhecida por um velho caçador que
orientava o capitão. Lucan, o arauto, oferecera-se para atuar
como batedor, alegando ser ágil e rápido. Balgata não
ofereceu resistência. Pensara que esse papel seria disputado
por Seridath, mas o cavaleiro manteve silêncio, postado ao lado
do capitão. Lucan desapareceu durante toda a tarde. A marcha
era lenta, penosa e ninguém ousava dizer uma palavra. Ainda
estavam na zona de morte. A velha trilha abandonava a campina e
cortava uma extensa floresta repleta de enormes pinheiros de troncos
frondosos. As árvores estavam secas, por causa do início
do inverno, mas sua cor era mais escura que o normal, como se
houvesse uma camada de fuligem a cobri-las. O chão emanava um
cheiro podre e úmido. Aquela terra já parecia morrer
com a maldição que se espalhava.
Continua...
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