Naqueles últimos dias, Seridath já tinha visto coisas horríveis, mas nada tão hediondo quanto a visão daquela cela, o palco de um massacre covarde. Sentiu o ímpeto de voltar-se contra a espada, castigá-la de alguma maneira por sua rebeldia. Em sua mente, percebia que de Lorguth emanava leviandade e despeito, como uma criança fazendo pirraça. Queria fazer a insolente pagar. Mas logo o rapaz ponderou de forma diferente. Talvez precisasse daqueles mesmos poderes para escapar da cidade. Sem a cooperação Lorguth, mesmo sua força e habilidade não evitariam sua morte. Com aquela barbaridade cometida pelos servos, seria para sempre odiado por Arnoll e pela Companhia.
Seus pensamentos foram interrompidos por um choque violento. O punho de Balgata atingiu com força o rosto de Seridath. Atordoado, o jovem sentiu suas costas baterem com violência nas barras de ferro de uma das celas. Suas mãos alcançaram quase automaticamente o punho da espada negra, mas ele controlou-se. O capitão ainda o olhava com fúria, mas não demonstrava intenção continuar a agressão.
– Saia – disse ele. – Saia da cidade agora. Não quero nunca mais ver sua maldita cara.
– Espere, Balgata. A culpa não foi minha, eu... – tentou dizer Seridath.
– Pro abismo de Nibala com suas desculpas, verme – cortou Balgata, a voz carregada de rancor controlado. – A culpa é sua por ter escolhido carregar essa espada maldita. Quero ter certeza que nunca mais verei você e sua espada. Se o encontrar novamente, farei você sentir o que é ter o ventre invadido por metal.
Seridath optou por permanecer em silêncio. Sentia a possante vibração de Lorguth em seu lado. A lâmina estava até mesmo aquecida, tal era sua euforia. E o rapaz sabia o sentido disso. Expulso da cidade, sua única escolha seria enfrentar os inimigos que, provavelmente, no final do dia alcançariam a campina que se estendia ao norte da cidade. O longo cerco seria inevitável. Mas, antes, o Viajante Cinzento seria obrigado a enfrentar o tal “ente poderoso” que comandava aquela legião de mortos.
Sem dizer mais uma palavra, Seridath voltou as costas para Balgata. Os outros guerreiros que desceram com eles à prisão acabavam de despedaçar as quatro criaturas, servas de Lorguth, que não ofereceram resistência. Balgata seguia logo atrás de Seridath, como que esperando qualquer reação inesperada da parte do guerreiro. Alguém ao longe gritou o nome do capitão. Um dos soldados chegava, segurando pelo pescoço um garoto franzino, sem camisa, cujas costelas revelavam-se de cada lado do seu tronco. O capitão olhou com surpresa para o soldado e perguntou:
– O que foi, Desmond? O que quer com esse garoto?
– Eu conheço esse "garoto", senhor. Não se deixe enganar, capitão. Esse "garoto" é um homem adulto. Já foi condenado a trabalhos forçados no reino de Renandart. Eu conheci o "Rouba Queijo" quando servi na guarda da capital. Parece um ratinho pequeno mas pode fazer um baita estrago.
– Sei... – respondeu Balgata, estreitando os olhos. – Mas chega de mortes por hoje. Joga esse espertinho pra fora da cidade, junto com o maldito lá. Vão fazer companhia um para o outro.
Antes que o sol se inclinasse rumo à tarde, Seridath atravessava o portão de Arnoll. As marcas cruas da luta estavam espalhadas pelo chão, enquanto os habitantes da cidadela, recém-libertos, auxiliavam os soldados da Companhia a arrastarem os corpos dos bandidos para fora dos muros e levarem para dentro os aliados mortos ou gravemente feridos. As carroças, que não haviam sofrido dano, aguardavam que o trabalho terminasse para serem levadas ao interior dos muros. Seridath passou pelo grupo de aldeões e guerreiros sem voltar o olhar. Sentia-se humilhado, mais uma vez, pela espada que escolhera por serva. O cavaleiro então notou que era seguido de perto por um rapaz franzino, que mais parecia uma criança. O coitado estava apenas vestido com uma calça de couro e um camisão de algodão grosso, tendo o corpo magro exposto ao vento frio do inverno que se aproximava. Seridath parou e encarou o garoto. Havia ignorado a conversa entre Balgata e seu subordinado, Desmond.
– O que faz aqui, moleque? – perguntou, com rispidez. Thin parecia querer desaparecer, de tão encabulado. Sentia-se mais intimidado do que nunca, principalmente por ter percebido com rapidez as circunstâncias em que estava metido. Sua mente perspicaz o fez entender que o homem da espada negra era encrenca, mas seria ainda pior ficar sozinho naquelas terras amaldiçoadas.
– Eu... eu v-vou com... – vacilou o ladrão.
– Vai merda nenhuma, rapaz – respondeu o guerreiro, deitando a mão no cabo de Lorguth. – Vai é alimentar o fio da minha espada.
O ladrão permaneceu parado, com os olhos arregalados para a mão que Seridath mantinha sobre o cabo da espada. Alguns moradores haviam ocupado a ameia e observavam a saída dos renegados. Alguém gritou um insulto e, segundos depois, um tomate podre bateu forte nas costas de Thin. O ladrãozinho virou-se, magoado, enquanto arqueava, como se estivesse ferido. Agora, as pessoas vaiavam com energia e algumas delas jogavam verduras podres em Seridath e em seu contrariado companheiro. O cavaleiro tremeu de ódio, enquanto fazia a espada deslizar para fora da bainha.
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