quarta-feira, junho 08, 2011

Sobre culpas e profetas...

Eu havia acabado de sair do trabalho. Sorte o trajeto até minha casa precisar de apenas um ônibus. E sentado! Sorte? Mesmo? Aproveito essas longas horas para adiantar minhas leituras. Hoje o tempo é tão escasso que só mesmo em um lotação sacolejante que temos a oportunidade de uma outra viagem. E olha que às vezes eu até arrisco leituras malabaristas, usando para pendurar a mochila o mesmo braço que segura o livro.

E justo quando estava mais entretido em uma profana viagem literária, senta ao meu lado um rapaz. Roupas simples, bermuda, barba, jeito tranquilo e pacato. Entre suas mãos, uma Bíblia. Meus olhos escapam furtivamente para as páginas abertas, pois o rapaz não perde tempo para também aproveitar sua oportunidade de devaneio. Um título enorme parece alardear a este leitor clandestino, como uma propaganda: Malaquias. As primeiras palavras de um Profeta Menor. O Último Profeta.

Meus olhos retornam para meu próprio livro. Mas não estou mais sozinho em meu devaneio. Segue-me a culpa. Em minha leitura, o personagem visita um puteiro, reclama do bafo da puta. Enquanto meu companheiro de viagem passa um tempo com Malaquias.

De repente ele tenta chamar minha atenção, tocando com seus dedos meu ombro direito. Eu me viro para ele, em resposta. "Estou te incomodando?" pergunta ele, referindo-se ao seu ombro, que encosta em mim. Respondi que não, de certa maneira perplexo. Impossível estranhos não se encostarem em um lotação metropolitano. Ou seria outro o incômodo?

Novamente divago. Lembro-me da música que escuto com meu fone de ouvido. Uma banda de heavy metal, com seus temas polêmicos, profanos. Sim, estou profundamente incomodado. Comigo mesmo. Com a culpa que paralisa meus braços, que não me deixa dizer tudo o que fica apertado no peito. A mesma culpa que nasceu com este homem, que fazia o menino de sete anos orar pedindo a Deus que não o deixasse morrer dormindo, pois tinha medo de despertar no Inferno.

O rapaz em alguns momentos tentava puxar conversa. Percebi que eu mesmo, de tão incomodado, não dava muito papo. Educado e dócil, ele fazia perguntas das quais sabia as respostas como, por exemplo, o nome da avenida pela qual passávamos. Enquanto eu me perguntava se ele tentaria me evangelizar. Evangelizar. Outra demanda da culpa. Não evangelizar é deixar o outro perder-se. E permitir a perdição do outro é invocar sua própria perdição. Assim dizia Ezequiel. No caso, um Profeta Maior.

E toda essa culpa atravessava minha mente, enquanto eu me perguntava a real intenção do desconhecido jovem. No final, ele não queria me evangelizar. Parecia querer uma palavra de consolo, pois sua vida não estava fácil. Queria vender dois vales-transportes. Havia perdido o emprego e os documentos, inclusive os papéis do Seguro-Desemprego. Ele lamentava ter perdido o emprego de porteiro. Queria o que fosse possível, faxineiro, zelador, servente. Enquanto eu me preocupava com sua inconveniência. A culpa é um veneno compulsório.

Não sei o que poderia ter feito por ele. Quem sabe ter conseguido seus dados para indicá-lo a algum conhecido que pudesse oferecer a ele uma oportunidade. Ou mesmo poderia ter dito: Deus irá guiar seus passos, ajudar você a encontrar um bom emprego. Afinal, acredito em Deus. Mas vale a pena acreditar na culpa?

3 comentários:

  1. Sou pessimista e penso que ele queria aplicar um golpe em você.
    Culpa é ausência de paz e tranqüilidade. O resto é metafísico demais pra dizer num comentário, a gente conversa depois!

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  2. às vezes ficamos incomodados mesmo com as pessoas que já chegam com uma biblia e tenta puxar uma conversa.. Acho que eu também ficaria incomodada, mas sei lá... como sou de lua.. acho que acabaria escutando os choramingos do pobre rapaz, até ele acabar de desabafar, porque uma coisa é fato.. eu não conseguiria continuar lendo... e olha que eu também tenho mania de ler nos ônibus enquanto estou voltando para casa de algum lugar

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  3. A culpa faz parte da nossa porção humana. Não agimos somente por instinto ou por vontade. Agimos baseados também em padrões culturais que são modificados, exatamente, por pessoas que não se sentiram culpadas em serem subversivas.

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