Kain e sua inusitada companheira caminharam apressadamente por caminhos cada vez mais escuros e úmidos. Segundo Scarlate, o aqueduto levava diretamente a um torreão e este para uma escada secreta que dava diretamente na câmara do Rei da Cidade Suspensa. Não havia garantias de que a entrada não estaria vigiada, mas a Cortesã contava com o fato de que quase ninguém conhecia essa passagem.
"Ao que parece," comentou a jovem, "nem o Rei sabe que essa passagem existe."
"Isso é bom demais para ser verdade, Sofia" ofegou Kain. "Ainda me pergunto se isso tudo não é uma armadilha."
"Você me ofende com essas palavras, Kim. Mas me ofende mais ainda ao me chamar por esse nome. Eu deixei de ser Sofia há muito tempo. Só voltarei a atender por esse nome quando você tiver de volta seu coração."
Kain fez um muxoxo, enquanto acompanhava Scarlate, que havia transformado o passo rápido em ligeira corrida. Não confiava na Cortesã, nem em seu agente, o Ambulante Chinês. Ao que parecia, o oriental havia ajudado a moça por todo o tempo que ela passara lá, inclusive garantindo seu ofício na taberna. Com as décadas se tornando séculos, a antiga dona do lugar cedeu o direito de propriedade à cortesã mais bela e talentosa, a moça cujo nome antes fora Sofia e que agora chamava-se Scarlate.
Toda essa história fora contada às pressas para o viajante, que não conseguia abrir mão de sua desconfiança. Era fato de que nomes e rostos misteriosamente surgiam como sendo familiares. Havia alguém, uma imagem no passado que insistia em pregar peças na mente do viajante, mas ele tentava resistir. Precisava concentrar-se, cumprir sua ambição, para depois partir para sempre daquele lugar. Sem ter seu coração de volta, seria sempre um Vazio, uma sombra, um escravo sem identidade, fugindo de senhores poderosos, que brincavam com a vida de homens e outras criaturas.
No fim do aqueduto, Scarlate levou Kain por uma porta oculta na escuridão. A porta era de fato imperceptível, seu contorno só tornou-se visível quando a cortesã tocou algumas pedras na seqüência do que parecia ser uma senha. Logo que a passagem abriu, os dois entraram com rapidez, chegando a uma escadaria íngreme e perigosa, que subia pela parede externa do torreão central.
Os dois subiram em silêncio. Nada se ouvia, a não ser o som de suas respirações ofegantes. Scarlate era a que mais ofegava, segurando a saia para que não tropeçasse em sua barra. Kain olhava por sobre os ombros da cortesã e lembrava do coração marcado de mordidas. Era delicioso e ao mesmo tempo completamente asqueroso. Algo então chamou sua atenção. Já estavam a uma altura considerável. O Torreão Real parecia ser mais alto até mesmo que a Biblioteca. Assim, o viajante pôde ter uma visão panorâmica da cidade, de seus titânicos edifícios e formidáveis fornalhas. Era imensa, vasta, como um Mal impossível de se extinguir. A visão foi tão perturbadora que Kain estacou entre os degraus, sentindo vertigem. Só não caiu porque foi agarrado por Scarlate.
"É incrível, não é mesmo?" comentou a cortesã, em um tom de malicioso desinteresse. "Essa é a Cidade. A Cidade dos Sonhos que todos almejam alcançar. Dizem que todos aqueles que acabam nos abismos mais profundos almejam um dia morar aqui. Neste lugar, uma pessoa pode negociar sua alma pelo mundo inteiro ou o mundo inteiro por uma alma nova.
Kain permaneceu calado. De qualquer forma, tudo o levava a crer que sua existência estava intimamente ligada àquela cidade. Talvez ele fosse um completo faz-de-conta. Talvez apenas reminiscências do corpo desse "Kim" fizessem parte do viajante e que a busca de um coração fosse algo completamente impossível e sem sentido. Uma alma artificial. Era bem provável que ele fosse apenas isso, um retalho de almas alheias. Mas Scarlate dizia algo importante e Kain resolveu prestar atenção.
"Está vendo aquelas enormes fornalhas? Já devem ter te falado que elas movimentam a Cidade e aquecem as caldeiras. Sabe o que mantém aquele fogo vivo? A magia dos corações negociados nesta cidade. Os corações vendidos por aqueles que querem trocar de alma e não têm posses para tanto. Esses corações são penhorados e, em seguida, transportados ao Banco, que os resgata. Em seguida, o Banco os vende ao Senhor das Fornalhas, que os usa para nunca deixar o fogo morrer. Por isso, acho que é quase impossível resgatar seu coração sem luta. O Rei da Cidade será nosso inimigo."
"Não importa" respondeu Kain, com secura. "Não cheguei tão longe para desistir. Se precisar medir forças com o Rei, que assim seja."
Com um sorriso enigmático, Scarlate agarrou a mão esquerda de Kain e puxou-o escadaria acima. Em um segundo, o viajante olhou para baixo e viu que seus pés estavam suspensos e os degraus pairavam alguns metros abaixo. Aterrado, ele viu que Scarlate tinha agora um par de asas de um vermelho vivo, intenso. Instantes depois eles já estavam no alto do torreão. Scarlate pousou graciosamente em uma sacada, enquanto sorria. Estavam diante de um enorme portão que dava para o gabinete particular real.
"Esta é tua última batalha, meu querido" disse ela, com um sorriso doce. "Não se esqueça, alcance seu objetivo e volte para mim."
Dizendo isso, a Cortesã beijou suavemente os lábios do viajante e, antes que o rapaz desse conta, ela já havia alçado voo, tomando distância entre as nuvens de fuligem que saíam das chaminés. Kain respirou fundo. Tudo aquilo poderia ser um embuste, mas não havia mais tempo para outras medidas. A noite findava. Lá embaixo, em algum lugar, o Vazio o aguardava. Se havia alguma chance de reaver seu coração, havia chegado a hora. Sem hesitar, Kain marchou corajosamente rumo ao portão e o abriu. Sua jornada havia chegado ao fim.
Scarlate, ainda possui o ar enigmático de uma mulher capaz de tudo para ter um coração sem marcas e de enorme poder de negociação, quanto ao Kain, ele fica afundado nas lembranças e no desejo de reaver o coração para voltar a ser mais que um mero Vazio... Muitas emoções ainda para o próximo capítulo e respostas para uma possivel emboscada ou não! É, meu caro Nerito, vc sabe realmente como prender a atenção, não uma, mas várias vezes ;)
ResponderExcluirHum... Scarlate, Scarlate...
ResponderExcluirEu ainda acho que essa história podia ir mais longe... não quero que acabe logo!!!
ResponderExcluir