A primeira sensação que o envolveu foi daquele frio cortante. A escuridão veio logo depois. Aquela era a hora em que todas as coisas pareciam mortas; a hora em que o próprio sono se assemelhava com a morte.
O menino meio que retornou à vida, vindo de um efêmero país de sonhos. Aos poucos foi tomando ciência de seu próprio corpo. Os sentidos ajudaram-no a mapear seu espaço. Visão e audição faltaram a seu chamado. Afinal, estava imerso em silêncio, como numa escuridão sepulcral.
O frio fazia sua respiração arder. Privado dos aromas familiares, lembrou estar em lugar estranho. Aos poucos a lembrança foi acompanhando sua própria consciência. Não estou em casa; estou na fazenda, muito longe de tudo que conheço. E agora parecia também completamente sozinho. As sombras eram suas únicas e reais companheiras.
A bexiga protestou e o menino percebeu que este era o motivo de seu despertar. Ainda sob as cobertas, tentou mapear mentalmente a casa estranha onde estava hospedado com a família. Abriu e fechou os olhos, percebendo que não fazia diferença. Hesitou ainda por alguns instantes para em seguida jogar as cobertas e saltar da cama.
As tábuas do casarão colonial rangeram sob seus dedos, quebrando o silêncio que parecia uma parede de gelo a impedir que ele se movesse. Pé ante pé, o menino vagou, lentamente, usando as mãos para evitar uma topada violenta em qualquer coisa oculta naquele breu.
Chegando ao que parecia a sala de jantar, uma terrível surpresa. Uma luz vermelha, mortiça, desafiava o menino bem longe, lá onde a escuridão parecia nascer. Era um minúsculo ponto escarlate, como um olho maligno a observá-lo; ou como a brasa do cigarro de um fumante solitário, estranho.
O pavor gelou as entranhas do menino, quase fazendo com que sua bexiga se desprendesse. Encostando a mão esquerda no batente da porta que fazia divisa entre a sala de jantar e a de estar, ele parecia vidrado por aquele olho vermelho. Conforme se lembrava, a porta do banheiro estava à frente, um pouco à esquerda, na metade do caminho até a luz vermelha.
O menino viu-se diante de três escolhas. Poderia virar as costas para a luz e voltar ao conforto da cama, apesar dos protestos da bexiga, ou poderia vagar até o banheiro e ignorar a luz vermelha.
A terceira escolha, a mais difícil, foi a que ele fez. Com passos lentos mas firmes, o menino seguiu até a fonte da luz vermelha. O ponto luminoso foi crescendo até revelar-se apenas a luz que indicava o funcionamento do freezer da cozinha.
Sentindo um misto de alívio e orgulho, o menino deu meia-volta e dirigiu-se ao banheiro. De lá, seguiu para sua cama. As sombras da madrugada ocultam muito mais do que revelam, dão formas de monstros a coisas banais. Mas para o menino, pouco daquilo importava. Na luta com seus medos ele se saíra vencedor. E se tornara o senhor daquela madrugada... e o senhor do seu próprio coração.
"Seus dedos rangeram sob as tábuas do casarão colonial"...ouça isso de novo, reveja..boa história. Lourdinha.
ResponderExcluirAs travessias noturnas são sempre perigosas.
ResponderExcluirCom escuridão não se brinca: elas enganam nossos sentidos, ou revelam, de fato , a monstruosidade das coisas?
Arrumado, Lourdinha! Obrigado, rs.
ResponderExcluirOi Nerito!
ResponderExcluirIsso me lembra o primeiro livro que li na vida. Chama-se Aventura no escuro, e também é sobre um menino enfrentando o medo do escuro ;)
Beijos!
Fê