Ao ouvir que Urso Pardo não
seria hóspede em sua casa, Denor pareceu querer retrucar, mas
apenas abriu a boca e, em seguida, fechou-a, enquanto baixava os
olhos. Como Urso Pardo havia dito, aquele não era tempo para
confortos ou formalidades. O andarilho queria estar próximo ao
exército para organizar o alojamento e alimentação
da tropa. Haviam trazido seus próprios suprimentos nos carros
de boi, mas os militares careciam de legumes frescos, como batatas,
nabos e cenouras.
Com muita presteza, os camponeses
se ofereceram para ajudar nessa carência alimentar. Muitos
deles haviam sofrido por causa da praga que se espalhara com rapidez.
Não havia família que não houvesse perdido algum
ente querido. Seu ressentimento se materializava na vontade de ver a
Companhia prevalecer sobre os zumbis.
O destacamento olhava curioso ao
que restara da aldeia, entre as cinzas das cabanas purgadas.
Seridath, por
seu lado, não pousara seu olhar para os aldeões uma vez
sequer. O rapaz observava de longe Urso Pardo sempre atarefado,
vagando de um lado para o outro, despachando ordens e recomendações.
Via com interesse como o andarilho parecia estar desconcertado. O
guerreiro adivinhava, e muito bem, que a tarefa estava mais difícil
para o velho depois que o Conde de Arnoll negara seu apoio, impedindo
que a Companhia estabelecesse sua base na forte cidadela. Essa
verdade deixava o rapaz com uma sensação que beirava a
satisfação. Afinal, não seria ele o único
a fracassar. Não conseguia esquecer sua humilhação.
A falha da espada doía-lhe como uma ofensa imperdoável.
Distraído e sentindo um gosto ruim na boca, descobriu Aldreth,
que parecia completamente perdido. O jovem permanecia sentado na
beira de uma carroça e voltava-se para todos os lados com um
olhar apático.
Aldreth não conseguia
disfarçar sua comoção, ao ver as expressões
vazias de tantas crianças. Sentia seu peito apertado ao ver
aqueles pequeninos com ares de quem já cedo sabe não
ter futuro. Além disso, o arqueiro era atormentado pelas
mesmas visões que o perseguiram nos últimos dias,
imagens dos extermínios anteriores.
Seridath se aproximou do garoto e
despertou-o de suas lembranças com uma forte batida no ombro.
Fitava o arqueiro com os mesmos olhos penetrantes e malignos. O
garoto se lembrou de que fora o próprio “cavaleiro negro”
que o metera naquele inferno, e seria mais que justo odiá-lo.
Mas Aldreth simplesmente não conseguia. Quase sentia pena,
pois como todos os outros, vira o fracasso quase ridículo de
Seridath em usar aquela espada, inútil contra os mortos-vivos.
– No
que está pensando, rapaz? – perguntou o guerreiro. – Se
tem alimentado lembranças desta guerra maldita, esquece! Isso
só te levará à loucura.
– E
por acaso, haverá paz para homens como nós? –
perguntou o garoto, com amargura. – Depois dos atos que cometemos,
ainda que por honra, creio que seremos atormentados para o resto de
nossas vidas.
– Calma,
jovem! – Seridath lançou um sorriso frio para o arqueiro. –
Fale com Urso Pardo. Esse sim dará bons conselhos sobre como
lidar com essa guerra. O homem é bom para curar corpos e
almas.
– Você...
quer dizer, o senhor considera isso uma guerra?! – Aldreth
demonstrava visível transtorno.
– E o que
mais poderia ser? Por acaso se você ficar parado diante
daquelas coisas, elas irão poupá-lo?
– Aquelas
coisas foram gente! – gritou Aldreth. – Gente como eu e você!
Seridath manteve silêncio
por alguns segundos, enquanto o pajem caía em si e seu temor
retornava. O cavaleiro se aproximou do garoto de forma a intimidá-lo.
Aldreth encolheu-se diante do ar ameaçador do amo.
– Quer
que eu lembre a quem você deve a vida, moleque? – murmurou
Seridath, entredentes. – Sua insolência é um insulto
ao meu orgulho, verme. Acho melhor lembrá-lo que você me
pertence!
Aldreth, acuado, baixou a cabeça
e suspirou:
– Sim,
Mestre, peço perdão.
O arqueiro fez menção
de inclinar-se, mas Seridath o deteve, irritado:
– Não
se incline, imbecil, nem use a palavra “mestre” por aqui, pelo
menos por enquanto. Você tem um juramento para comigo, mas o
mesmo não nos exime do juramento que temos para com este lixo
de Companhia. Você curvar-se aqui só me trará
mais problemas.
– Verdade...
– Aldreth pareceu confuso e frustrado. Erguendo os olhos,
perguntou, em desafio: – E a espada, tem funcionado melhor agora?
Seridath fitou o arqueiro,
consternado, quase enfurecido. O garoto bem sabia a resposta. Aldreth
afastou-se sem olhar para trás, buscando os demais arqueiros.
Seridath permaneceu sozinho,
remoendo seu despeito. Aquele garoto iria pagar por sua
impertinência. A verdade é que havia uma certa
preocupação incomodando o guerreiro. Ele estava
satisfeito com as dificuldades de Urso Pardo mas dedicava-se a esse
sentimento para encobrir o pesar que invadia seu interior. Lorguth,
ao não funcionar contra os amaldiçoados, revelara seu
poder maligno. E era certo que Urso Pardo percebera esse detalhe.
Intimamente, Seridath aguardava uma repreensão por parte do
andarilho, talvez até um ultimato para que ele deixasse a
Companhia. Mas o ancião não lhe dirigira a palavra
durante toda a viagem e parecia até mesmo desconhecer sua
existência. O jovem guerreiro somente sabia que Urso Pardo
mandara dois mensageiros rumo ao sul, com cavalos emprestados por
Denor. Aqueles mensageiros certamente trariam o famoso Serpente
Flamejante, juntamente com toda a Companhia, para Keraz. O exército
que viria, segundo Seridath ouvira falar, alcançava o número
de três mil homens.
Ao fim da tarde, os guerreiros da
Companhia receberam cobertores e pequenas tigelas com sopa com raros
fiapos de carne e complementada pelos legumes que os aldeões
haviam fornecido. Não tinha um gosto definido, mas estava
quente e foi acompanhada por um pedaço de pão sem
fermento. Após o jantar frugal, os três capitães
distribuíram as sentinelas, montando em comum acordo a escala
de vigia. Seridath fora um dos escalados para o primeiro turno. O
jovem cruzou os braços e escorou suas costas na paliçada,
soltando um suspiro profundo. Estava cansado e abatido, seu desânimo
era profundo. Todos os seus planos agora pareciam-lhe totalmente
ingênuos. Afinal, o que ele queria provar? E para quem? O que
queria de fato conseguir em manter consigo aquela espada ao invés
de livrar-se dela? E finalmente, por que fora enviado para
encontrá-la? Quem o enviara?
Seus pensamentos foram
interrompidos pelos os calmos passos do andarilho Urso Pardo, que se
aproximava. Os olhos do velho estavam apreensivos e fitavam Seridath
com firmeza. Pelo visto, a inevitável conversa estava para
acontecer.
Continua...
Parece com o episódio de The walking dead que eu vi ontem! <3 Viciei nessa gora...
ResponderExcluirBeijos!
Fê
Tem selinhos lá no blog guardiaodamuralha.blogspot.com
ResponderExcluirAinda bem que já tem a continuação... 😊
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