Seridath teve espírito o
suficiente para erguer com rapidez seu braço esquerdo,
protegendo-se com o largo escudo, enquanto via o andarilho desabar
como um boneco desajeitado. O guerreiro lançou-se sobre seu
líder, para também mantê-lo sob o escudo. Com a
mão direita, tateou cuidadosamente o local do pescoço
perfurado pelo dardo. Era um projétil negro e pegajoso;
parecia ser feito de madeira enegrecida pelo fogo e besuntada de
piche. Tinha talvez quatro palmos de comprimento e era fino nas duas
pontas. No centro, chegava à espessura de uns dois ou três
centímetros. O ancião arfava com dificuldade, parecia
querer dizer algo, mas o dardo frustrava suas tentativas. A ferida
era de fato mortal e aquele corpo velho foi aos poucos amolecendo,
desistindo da vida.
O início de noite pareceu
mais escuro, pois a chuva de dardos negros ficou mais forte,
adensando a escuridão. Seridath captou o último lampejo
de vida nos olhos do andarilho Urso Pardo, que morria em seus braços.
Naquele momento ele sentiu a dor de ter perdido um pai. As palavras
do velho haviam causado uma profunda impressão no jovem, de
modo que ele sentia-se confuso e aturdido por aquele tremendo golpe
do destino. "O velho está morto", pensou ele, ao ver
que de fato Urso Pardo parara de respirar e seu corpo estremeceu pela
última vez. O guerreiro olhou ao redor, enquanto via homens
desesperados que corriam para todos os lados serem também
atingidos pelos projéteis. O chão, as toras da
paliçada, os casebres ao longe, tudo estava coberto de setas
negras, tantas como os espinhos de um ouriço. Parecia que uma
espécie de relva escura e maldita nascera do chão em
poucos segundos.
Seridath tornou a olhar em volta,
procurando seu jovem pajem, Aldreth. Ele estava agachado, de costas
para a paliçada, com as mãos na cabeça. Estava
intacto, pois a proximidade com a defesa de madeira o havia protegido
dos dardos. Seridath com esforço arrastou o corpo do
andarilho, ainda tentando proteger-se dos dardos. Deixou Urso Pardo
sentado, com as costas apoiadas na paliçada. Não queria
que mais dardos machucassem o corpo do velho. Correu então até
Aldreth e tocou os ombros do rapaz. O arqueiro ergueu seu rosto e
fitou Seridath com uma expressão de puro terror. O que o rapaz
vira que o deixara tão aterrado? Outros arqueiros estavam
posicionados em plataformas improvisadas atrás da paliçada,
de forma que pudessem vigiar e atirar por sobre as estacas afiadas,
mas quase todos pareciam aturdidos demais para isso.
O guerreiro tomou lugar entre
eles, para ver o que se passava fora da aldeia. Ainda não
escurecera completamente e ele pôde ver uma grande massa que se
movia, aproximando-se com vagar, mas em velocidade regular. Sentiu um
nó gelado atravessar sua garganta. Um batalhão de
vultos marchava contra eles com disciplina militar. Eram corpos de
homens que se moviam, com a pele necrosada e já mostrando
sinais de decomposição. Estavam vestidos com uniformes
de uma cor cinzenta, com uma caveira negra desenhada no peito.
Arrastavam pesados machados de guerra, clavas ou lanças.
Mas a imagem mais horrorosa era de
criaturas que se moviam em uma extensa fileira naquele exército.
Suas peles eram necrosadas como as dos zumbis uniformizados, mas
esses seres não carregavam armas. Não tinham pernas,
mas seus braços eram no mínimo quatro vezes maiores que
os de uma pessoa normal, de forma que eles se erguiam bizarramente
acima das cabeças dos mortos que marchavam. Usavam uma espécie
de túnica curta e moviam os braços com grande
agilidade. Era difícil crer que aquelas coisas, que se moviam
de forma tão estranha, já haviam sido seres humanos.
Eram os artilheiros daquele
maldito exército. Tinham diversos dardos costurados em suas
bocas. Cuspiam esses projéteis, lançando-os contra os
alvos inimigos. Não tinham cabelos e no topo da cabeça
uma fileira de espinhos estavam dispostos no estilo moicano. Ao
contrário da silenciosa infantaria, esses espinhentos estavam
constantemente soltando gemidos agudos por suas bocas obstruídas,
sons que pareciam risadas irônicas, como se achassem graça
de algo que só eles sabiam.
Olhando em volta, Seridath apenas
percebeu o pavor. Os jovens perto da paliçada observavam
anestesiados os corpos das vítimas que se espalhavam pela
relva. Alguns deles viram Urso Pardo ser atingido e sua morte já
era gritada entre os homens do exército, enquanto os
camponeses corriam sem rumo. Ainda que a aproximação
dos inimigos fosse inevitável, nenhum dos jovens se movia.
"Ordens," pensou Seridath, "precisamos de ordens, com
urgência." Mas todos pareciam imersos em letargia. O
guerreiro não tinha tempo a perder. Viu um rapazinho magro e
de estatura mediana passar correndo. Reconheceu-o de imediato.
– Arauto!
– gritou.
O rapazinho não respondeu.
Seridath afastou-se da paliçada, correndo até o garoto,
que não havia sido alvejado por milagre. Ele pareceu não
ter notado o guerreiro, pois afastava-se com rapidez rumo ao centro da aldeia.
Já não caíam tantas setas quanto outrora.
Seridath manteve seu escudo erguido, enquanto ouvia os estalos das
pontas dos dardos baterem em seu largo bojo.
– Arauto!!!
– gritou novamente.
O jovem franzino parou e
voltou-se. Correu na direção do guerreiro. Era um palmo
e meio mais baixo que Seridath e tinha os cabelos castanhos, bem
revoltos. Estava vestido com cota de malha e túnica, como
qualquer soldado, mas tinha na cintura um sabre no lugar de espada.
Não portava escudo e segurava uma pequena trombeta de prata em
sua mão esquerda. Na direita estava seu elmo, que havia sido
retirado para que o jovem pudesse ajeitar o cabelo castanho que lhe caía sobre os olhos. O rapazinho sorriu ao aproximar-se,
indo abrigar-se sob o escudo. Ao contrário do que o cavaleiro
julgara, seus olhos não demonstravam medo e carregavam um
curioso brilho.
– Onde
estão Murrough e os outros capitães? – perguntou
Seridath, de chofre.
– Murrough
está morto – respondeu o garoto. – Levou uma seta bem no
olho. Aleigh está ferido de morte e não consegui
localizar Balgata. Talvez esteja na ala oeste da paliçada.
Aleigh e Balgata eram os outros
dois capitães. Seridath não ponderou na morte de
Murrough, seu capitão, com qualquer sentimento. "Isso,
sim, é guerra," pensou. Mas os deuses não pareciam
favoráveis, ao permitirem que dois capitães e o
comandante do destacamento fossem abatidos com tamanha rapidez. Não
poderia vacilar agora. O guerreiro deu uma ordem direta:
– Soe
o toque de cerco e, em seguida, o toque para convocar toda a tropa.
Quem puder ouvir e obedecer, virá lutar. Vamos perfilar os
arqueiros sobre a paliçada. Quero todos eles atirando contra
aquelas coisas que cospem setas!
O arauto não contestou as
ordens do guerreiro. Levou a trombeta aos lábios e tocou uma
série combinada de notas. Logo foram surgindo homens que
haviam se abrigado nos casebres. Para a surpresa de Seridath, havia
um número considerável de arqueiros. Pelo menos uns dez
aproximaram-se correndo, carregando sacolas de flechas, para ajudarem
aqueles que já mantinham suas posições sobre as
plataformas de madeira. A ordem de Seridath foi bem acertada. Os
arqueiros dispuseram-se em grupos de quatro ao longo da paliçada
e capricharam na precisão contra as estranhas criaturas. Antes
que os zumbis armados chegassem à aldeia, não havia
mais nenhum lançador de dardos entre os inimigos. Mas ainda
havia aquela terrível massa de mortos que marchava e já
estava bem próxima da paliçada. Aqueles machados com
certeza reduziriam as defesas a simples destroços.
Em instantes, os primeiros daquela
horda compacta já cruzavam o fosso. Seus machados começaram
a golpear com força a madeira. Quatro arqueiros logo acima
desses zumbis freneticamente disparavam contra os agressores. Os
zumbis caíam, cobertos de flechas, para em seguida serem
pisoteados pelos que vinham atrás. Não havia apenas
aqueles zumbis, mas também os tais homens-macaco, os argros,
que poderiam usar de sua natural agilidade para subir a pilha de
corpos que se acumulava ao pé da paliçada. Seridath
previu que logo aquelas criaturas alcançariam o topo da
defesa, usando os corpos dos mortos como apoio. Voltou-se para o
arauto, que ainda permanecia ao seu lado.
– Mande
aqueles idiotas saírem logo de lá – rosnou, nervoso,
para o arauto. – Leve-os com você. Vamos tentar assegurar o
centro da aldeia livre de inimigos. Arrume mais uns quatro ou cinco
homens, guerreiros. Concentre todos os moradores sobreviventes na
casa do prefeito; faça barricadas ao redor. Se algum homem
oferecer resistência, ou atrapalhar qualquer trabalho seu, não
hesite em matá-lo.
O arauto saiu para cumprir as
ordens, levando os quatro arqueiros. Alguns homens, dentre soldados e
arqueiros, aproximaram-se de Seridath quando ele se lembrava dos
anões, perguntando-se onde estariam.
A resposta foi um estrondo à
direita. Os anões, violentos e muitas vezes inconsequentes,
não estavam sob ordem alguma. Assim como Seridath, eles viram
aqueles mesmos argros que tentavam escalar a defesa. Movidos por um
ódio ancestral a essas criaturas, os anões atacaram sem
prudência. Uma porção daquelas esferas pequenas e
escuras foi lançada por cima da paliçada. As bombas
explodiram em conjunto, destruindo parte da defesa de madeira. Os
argros sobreviventes surgiram da brecha na paliçada,
empunhando grosseiros machetes, enquanto o grupo de anões,
bravo e valoroso, postou-se em prontidão para aguentar o
choque. As bombas não deram cabo nem de metade daqueles
homens-macaco. A carnificina começou. Mesmo prontos para o
combate mortal, portando seus martelos e machados de guerra, aquele
punhado de anões não daria conta de quase o dobro de
inimigos. Atrás dos argros que invadiam a paliçada, os
sombrios zumbis golpeavam a brecha para torná-la mais larga.
Seritah gritou aos homens que o acompanhavam:
– Pelos
deuses! Matem logo aquelas coisas!
As flechas foram disparadas contra
os inimigos, mesmo com o perigo de que aliados fossem alvejados,
enquanto os guerreiros procuravam cercar os anões que lutavam.
Seridath lamentou a perda de seis valiosos anões. Os nove
restantes, ofegantes e feridos, se juntaram ao grupo de guerreiros
encabeçado por Seridath, que avançava rumo à
brecha com uma carroça, para bloquear a passagem aberta pela
explosão.
Aldreth não saía do
lado do amo, estava colado a ele como uma sombra, embora de tempos em
tempos fizesse um patético disparo, tentando atingir algum
zumbi que tivesse alcançado o topo da paliçada. Mas
alguns deles já estavam prestes a fazer outras brechas na
muralha de madeira. Seridath dispusera todos os guerreiros que
encontrara para abaterem os inimigos nas brechas que iam surgindo,
mas logo haveria mais aberturas do que homens para evitarem que os
mortos nelas penetrassem. O próprio rapaz ainda não
havia entrado na peleja.
Desde o início da luta,
Seridath havia lançado longe a espada que recebera de
Murrough. Estava decidido a fazer Lorguth funcionar a qualquer custo.
Como o próprio Urso Pardo havia dito, ele iria impor sua
vontade sobre a lâmina negra. O arauto retornou, correndo com
animação, embora estivesse sozinho. Parecia realmente
divertir-se com tudo aquilo.
– Estão
todos no casarão principal, senhor – informou, sorridente. –
Aleigh e os outros feridos estão sendo tratados pelo
sacerdote. Encontrei o capitão Balgata. Ele está ao
norte da aldeia, com um outro grupo. O senhor não vai
acreditar no que está acontecendo lá.
Sua fala foi seguida pelo som de
madeira rachando. Em vários pontos, já podiam ser
vistas as lâminas dos machados destruindo as toras de madeira,
que soltavam grandes lascas. Em outros pontos, guerreiros se
aglomeravam nas brechas recém-abertas, tentando empurrar com
seus escudos os zumbis de volta. Estavam condenados.
Continua...
Oi Nerito
ResponderExcluirAchei seu blog maravilhoso, o título, a descrição... Esses textos são seus né?
Ainda não consegui ler tudo, mas amanha eu volto...
Prefiro mil vezes um blog com textos próprios ( o meu por enquanto só tem um) porque a gente acaba conhecendo um pouco do blogueiro também né?
Só achei um pouco confuso esse pop up que abre na hora de comentar, e o captcha também é chatinho..
No mais, está de parabéns!
Tem post novo lá no blog!
Beijão
endless-poem.blogspot.com.br
Adorei! Muito interessante a forma que você levou a história misturando culturas e épocas diferentes com seres surreais. E esse final ficou com um gostinho de quero mais.
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