"Porque derramarei água sobre o sedento, e rios sobre a terra seca..." Isaías 44:3
A lâmpada incandescente vacila. Mais um efeito da maldita estiagem. No barraco de um cômodo, a mãe ora. Faz três dias que a água falta no morro. As roupas, amontoadas sem lavar. O marido, recém-empregado, já não tem camisa limpa. As crianças, sem tomar banho. Ela, no fim de uma menstruação, sentindo-se imunda. O último balde de água acabara no dia anterior, para fazer comida. E agora, junto com a falta d'água, a ameaça do racionamento da eletricidade.
Suspira, pensando novamente no marido. Na época em que ele conseguira o emprego de porteiro de um edifício na Savassi, a alegria quase virou aflição. Temia perder o benefício do governo, o único provento que impedira que a família de seis pessoas passasse fome. Felizmente, não foi preciso; o salário do marido não era alto o suficiente para causar o corte do benefício.
Do barraco sobe um odor acre, mistura de comida velha, urina e suor. Banheiro sem lavar, quase faltando água até para beber. Quem sabe no dia seguinte a prefeitura manda um caminhão pipa para abastecer as casas do morro? Quando ainda não havia saneamento, a água era fornecida assim. O caminhão pipa chegava e despejava água em vários tonéis de plástico. Seus donos então vendiam a água aos moradores retardatários, muitas vezes munidos apenas de latas de tinta ou panelas para guardar o mínimo de água para seu uso.
E então, de repente, havia máquinas revirando o chão do morro, cavando, plantando no chão enormes blocos de concreto. E no morro passou a ter água encanada e esgoto. Mas o que realmente mudou a vida da família, quando antes eles eram obrigados a contar com a simpatia e solidariedade de outros, foi a tal bolsa. Já não eram obrigados a comer só farinha com café pra enganar a fome. Podiam, com dignidade, comprar seu alimento.
Mas agora tudo parecia incerto. Boatos corriam de que o benefício poderia ser cortado. O noticiário anunciava uma enorme crise. E para piorar, a estiagem provocando o racionamento de água e energia.
Puxando mais um suspiro, ela apoia os braços na janela, olhando ao longe a escuridão que termina nos limites do morro. Lá em baixo, na Savassi, a luz mantém sua presença, forte e pungente. No prédio em que o marido trabalha não faltará energia. Lá ele poderá assistir seu futebol na televisão portátil comprada com o primeiro salário. Lá o elevador não para, o comércio não dorme e a beleza passeia em casulos metálicos hiperluminosos. Na Savassi, as fontes não secam e a luz não se apaga.
E nesse momento, como numa epifania, ela se vê num gigantesco monte de areia. Lá embaixo, a rocha. Lá, onde tudo é mais vívido, nítido, em alta definição. Enquanto os barracos, ela, os filhos e vizinhos, o morro todo são a sombra, a falta, a incerteza. Um absurdo monte de areia. Uma enorme duna que numa insaciável voragem traga de si para si todas as coisas.
Lindo seu conto, querido!
ResponderExcluirNorma, sua linda, obrigado! Um elogio de você vale mais que ouro!
ResponderExcluirGostei do texto e da sua forma de escrever! *-*
ResponderExcluirhttp://somundomeu.blogspot.com/
Obrigado, Ana! Um abração! ^^
ResponderExcluir