segunda-feira, outubro 12, 2020

A lesma


Minhas mãos desfolhavam um molho de alface. Invadido pelo verde, meu olhar se decantava na cascata que a água da torneira fazia, envolvendo como um véu a hortaliça. Sentia uma serenidade perene. O tempo se estendia, líquido como a própria água que eu usava para lavar a alface.

Depois de separar cada folha, observei algo cinzento escapar pelas bordas verdes das menores folhas e escorrer para o ralo. Terminei de colocar as folhas na vasilha de plástico para desinfetá-las e voltei minha atenção para o centro da pia. Presos na malha de metal que protegia o ralo, alguns pedaços de alface, pequenos resquícios que não resistiram ao meu toque e à força da água, jaziam como vítimas anônimas de uma batalha.

Observei com mais atenção, enquanto mexia com cuidado no ralo, até encontrar a coisa cinzenta e cilíndrica que se escondia entre os pedaços de verde. Ela se aderiu com facilidade ao meu indicador esquerdo, de forma que ergui-a até os olhos. 

Era uma lesma. Devia ter menos de um centímetro de comprimento. Tímida, deixava seus olhos-antenas escondidos para logo em seguida estendê-los, tentando perceber o mundo alienígena onde se encontrava. Seu dorso cinza contrastava com o ventre esbranquiçado. 

Fiquei a ponderar o que fazer com ela. Fui lançado ao passado, nas férias em um quintal com uma enorme área coberta por ardósia. Lá, várias lesmas encontravam a morte após serem bombardeadas por pitadas de sal que eu e minha irmã cruelmente lançávamos nelas. Nossa crueldade se misturava à ingenuidade de acreditar que destruir algo diferente seria uma coisa boa a se fazer. Se era diferente, era mau. Ainda mais se fosse nojento, gosmento e tivesse olhos-antenas.

O absurdo de minhas ações infantis atingiu-me com toda a força. Afinal, por que matar uma lesma com sal? Por que torturar um ser várias vezes menor e mais fraco? Apenas por ser diferente? Apenas por ser mais fraco? Apenas por ter o poder para fazer isso? 

Enquanto a cena se repetia infinitamente em minha cabeça, deixei o apartamento. Tinha o dedo indicador da mão esquerda estendido. Na ponta, essa inusitada intrusa que eu descobrira quando lavava a alface. Desci as escadas com a atenção dividida entre os degraus e a minha "tripulante".

Fui até o pequeno canteiro que existe diante do meu prédio. Estendi o indicador até tocar a tenra folha de uma das plantas. Escolhi com cuidado. Escolhi uma folha que se aproximasse, ainda que vagamente, de uma alface, fosse pelo verde vivo, fosse pela fragilidade de sua textura. Demorou um pouco para que minha companheira entendesse que deveria desembarcar. A princípio, ela encolheu-se toda. Temi que estivesse sentindo alguma agressão, alguma violência. Era apenas estranhamento. 

Por fim, ela deixou meu dedo e ganhou a superfície verde. No seu ritmo lento como o próprio tempo, ela seguiu seu trajeto. Não sei para onde se dirigia. Talvez para a minha infância, para o meu passado, para a chance de uma outra história, em que lesmas não precisam sofrer pela cruel ignorância de um menino.

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