Essa ausência de perguntas era também fonte de alívio. Afinal, se leitoras e leitores não demandavam por mais textos, por mais histórias guardadas, não precisava me preocupar tanto com a produção deste blog. Contudo, havia também a pulsão interna, a força motriz de meus próprios escritos. Eu meio que me sentia em dívida com essa força. Sentia que precisava dar uma justificativa a ela, na forma em que se materializa.
Apesar dessa necessidade, sentia como se estivesse amordaçado. O medo, o horror, a angústia e o luto me tomavam e enchiam minha boca de vazios e silêncios. Por um tempo, tentei escrever, sem mencionar a morte. Tentei não falar do horror, do ódio, da crueldade e do desprezo pela vida. Eu tentei, mas tanta maldade, tanto descaso pelo próximo acabou por me soterrar de tristeza. Silenciei.
Os dias foram passando e a contagem de mortos aumentava. A incerteza da morte se somava ao fato de não saber se os procedimentos de higienização serviriam mesmo para impedir o vírus. Estaria eu seguindo as instruções corretamente? Será que por um descuido, por uma distração, o inimigo invisível chamado CORONAVIRUS insidiosamente se infiltraria em meu lar e levaria alguém querido? Ou de repente me levaria do mundo? Além disso, enquanto lia sobre a contagem crescente de mortos, eu me perguntava quando essa doença chamada COVID-19 chegaria tão perto a ponto de levar alguém querido. Eu me questionava quando a estatística deixaria de ser um mero número e se tornaria uma parte infinita de meu mundo.
E isso aconteceu mais cedo do que eu imaginava. A morte soprou em minha nuca, dando sinal de sua presença. Cheguei a imaginar que seria apenas um susto, uma mera lembrança, e não uma presença real. Ledo engano. A finitude da vida veio me conceder mais um nome à lista de familiares para sempre desaparecidos deste mundo. A COVID-19 levava de mim alguém próximo em primeiro grau, apagava em minha vida a possibilidade de um reencontro, de um conserto, de uma conciliação, ou pelo menos de uma despedida.
A essa realidade, somava-se o fato de que estávamos todos fisicamente isolados. A autoimposição de ficar encerrado em casa, saindo em momentos específicos, deu a muitas pessoas a sensação de encarceramento. Em meu caso, não foi diferente. Sentia o corpo enfraquecer, pela ausência de exercício. Saía para um ligeiro "banho de sol", sempre com máscara e tomando o cuidado com a higienização, logo que voltava para casa.
Nos momentos em que não me dedicava ao trabalho, continuei buscando refúgio nas histórias. Uma amiga passou a mandar áudios da sua leitura de As mil e uma noites. Acompanhei lives de diversas amigas e amigos nas plataformas de mídias sociais. Cultivei a escuta de um maravilhoso podcast - Histórias com Café - que sigo acompanhando. Comecei a cuidar de plantas. E também procurei manter minha disciplina na leitura.
A jornada tem sido longa. Eu acabei por ver este período de pandemia como a travessia de um deserto. E nesse lugar ermo e seco, em que ainda me encontro, muitas foram as feras que me acossaram. A maior delas tinha a minha face. Distorcida, monstrificada, hedionda. Diante de minha própria feiura pude descobrir um pouco mais de mim. E reencontrar minha voz.
Que este humilde relato possa ser proveitoso para tantas pessoas que buscam sentido nestes períodos de escuridão, de dor e agonia. Que nele possamos nos reencontrar. E que as vozes possam, por fim, romper o silêncio, seja em gritos de revolta e dor; seja em risos e cantos de esperança.
Oi Samuel saudades de nossas boas conversas.
ResponderExcluirNesse dia 21/10 eu estava me submetendo a cirurgia de catarata no olho direito. então estou de molho no "molho" da "infinitena"(palavra descrita pela Ana Cantagalli), que inclui no meu vocabulário.
Desde março estou #emcasa (servidores acima de 60 anos com comorbidades) e passei por uns momentos de raiva, descrença na humanidade muito fortes. Questionei muito sobre a minha existência nesse lugar chamado Terra. E digo, não estamos aqui por um mero acaso. Acredito que sou necessária de algum modo. E além do mais, percebi que me tornei uma pessoa "melhor".
As angústias vão sendo deixadas de lado, para focar em coisas que trazem mais prazer.
É isso.
Beijão
Olá, cara amiga. Foi com grande alegria que recebi seu comentário. E me identifiquei muito com suas palavras. E concordo. Você é necessária. Beijo!
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