Sérgio recebeu uma inusitada visita em seu consultório. Um sujeito de meia-idade chegou anunciando ser deus. Se bem que ele disse ser aquele com "D" maiúsculo. Porém, por razões políticas, decidi grifá-lo com o "d" minúsculo.
Era um dia quente, daqueles que clamam por chuva. Sérgio praguejava por causa do ar-condicionado quebrado. Foi aí que entrou o homem que se anunciou "deus". Disse que estava lá para acertar uma pendência.
Irritado e incrédulo, Sérgio disse que estava trabalhando e que se não fosse um paciente, que se retirasse. Diante da recusa de seu interlocutor, o dentista correu até a sala externa ao consultório para brigar com a secretária. Como ela deixou um doido daqueles entrar?
Com a negativa da moça, que alegou não ter visto ninguém entrar, Sérgio pensou que estaria enlouquecendo.
Na verdade, "deus" realmente só era visível pra ele. O divino disse que estava lá para punir o dentista. Não por seu ateísmo corrente, sua atual incredulidade obstinada. Não pelo afastamento surgido no fim da juventude, nem pela postura niilista e zombeteira diante da vida. O homem, quando criança, havia caído na risada durante a aula de Ensino Religioso, após um colega fazer piada com o Espírito Santo.
Sérgio bem se lembrava. Tendo crescido em uma família terrivelmente evangélica, passara noites em claro, chorando, com a certeza de que havia sido condenado ao inferno, já que, ao rir de uma blasfêmia contra o "espírito de deus", teria sido cúmplice e não teria perdão.
O dentista abandonou o consultório, sendo seguido por "deus". Tentou evitar o confronto. Afinal, era "deus". O problema foi que o todo-poderoso não saiu de perto de Sérgio, não deixava o pobre homem em paz. E mais ninguém via o cujo. Como um amigo invisível inconveniente, ficava falando e falando, garantindo que só o deixaria em paz se ele o enfrentasse.
Para dar um fim à tétrica situação, resolveu enfrentar "deus" no braço. A cidade subitamente se esvaziou Em uma ponte, "deus" o aguardava. O tempo já não clamava, profetizava tempestade. Os dois se embateram no centro da ponte. Brigaram na chuva, durante um temporal que escureceu o mundo.
Sem acreditar, Sérgio conseguiu acertar um bom soco em "deus". Espancou o altíssimo. Arrancou-lhe os dentes na base do soco e viu um arco-íris surgir no céu, enquanto "deus" desaparecia em uma nuvem de contradição.
Que texto maravilhosoooooo! Quando você leu pra mim, pela primeira vez, fiquei encabulada. Agora lendo sozinha, fiquei pensando da fragilidade desse "deus". Acho que no fim das contas, ele só precisa ser enfrentado mesmo. Não porque ele precise, mas porque nós precisamos, para seguir em paz, sem peso, culpa, rancor ou pesar. Uma vez que socamos a "imagem" que construímos de deus, fazemos as pazes conosco. Selamos nosso autoperdão pelos pecados que achávamos que cometemos. Afinal, nem mesmo "ele", o deus poderoso, tá preocupada com nada disso, se é que ele existe. Faz sentido? Parabéns pelo texto, amor.
ResponderExcluirFaz muito sentido. Adorei a sua reflexão. Obrigado, meu Amor, pela leitura atenta. Amo você.
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