Sinclair é um jovem diferente. Desde cedo, sente essa diferença. Com uma visão arguta da vida, ele consegue perceber a tensão entre duas existências - a sagrada e a profana. Ansiando sempre pertencer ao mundo sagrado e luminoso, representado por seus pais religiosos, o jovem ainda em pequeno sente profunda atração pelo mundo profano e sombrio, que se representa nos criados que trabalham na casa e nas conversas que eles travam entre si, com relatos sobre sórdidos acontecimentos. Sinclair se percebe fascinado por esse mundo de violência e libertinagem, mesmo querendo pertencer totalmente ao universo sagrado e religioso de seus pais. Assim, essa dualidade lhe causa sofrimento e profunda comoção.
Tudo começa a mudar quando ele encontra Demian. Um pouco mais velho que Sinclair, o garoto tem uma postura altiva, por vezes adulta, mesmo sendo ainda criança. Demian não teme o tal mundo sombrio e age como se pudesse pertencer ao mesmo sem perder seu ar de nobreza e dignidade. Demian parece acima de conceitos de religião e moralidade. Com isso, irá provocar Sinclair, para que este busque seu próprio caminho e alcance um estado de plena humanidade, como detentor da "Marca de Caim".
Assim é, em linhas gerais, o início do romance Demian, de Herman Hesse. Profundo e denso, o livro é narrado pelo próprio Sinclair e nos apresenta três momentos de sua vida: A infância, aos dez anos, a adolescência, aos dezesseis, aproximadamente, e a idade adulta, aos dezoito anos. O livro salta grandes períodos de tempo, focando-se nestes três momentos com maior minúcia e atenção.
Mas afinal, o que quer Demian? Desde cedo ele provoca Sinclair, pois sente nele uma altivez, um porte que o destaca dos demais seres humanos. Demian diz reconhecer no protagonista a "Marca de Caim". Esta não seria sinal de uma maldição, mas da verdadeira liberdade. Aqueles que a tivessem não estariam presos aos preconceitos antiquados, aos valores religiosos e morais, mas estariam prontos a indicar o rumo para o futuro da humanidade.
Desta forma, Hesse reescreve todo o mito bíblico de Cain e Abel, dando-lhe novo significado. Cain deixa de ser um proscrito, amaldiçoado por deus, mas seria na verdade alguém amado pelo altíssimo, que lhe concederia a marca para que fosse protegido. Os demais homens teriam inventado a história do assassinato de Abel por temerem Cain e sua condição de alguém "invulnerável".
Como símbolo central do romance está o falcão que nasce de um ovo, sendo este o mundo, o qual deve ser destruído para que o nascimento possa ocorrer. Sinclair diversas vezes é levado a pensar no símbolo. Afinal, qual dos mundos deve ser destruído para que o nascimento de uma nova humanidade possa ocorrer?
Demian é de fato um romance complexo e profundo. Suas leituras podem ser várias, o que mostra a genialidade do autor. É importante destacar que essa diferença entre sagrado e profano pode também ser uma tensão de classes, uma vez que os pais de Sinclair representam a burguesia. As pessoas ligadas ao mundo considerado profano e sombrio são os pobres, a criadagem, os empregados. Com isso, ao misturar ambos os mundos e destruí-los, Hesse defende que não há superioridade nos valores burgueses.
Com um texto profundo e inquietante, Demian é um romance inesquecível, capaz de abalar crenças e preceitos. E apesar de ter mais de 100 anos desde que foi publicado, não perde a atualidade. Uma obra que parece ter sido escrita para o nosso tempo de sombras e incertezas.
Ficha Técnica
Editora: Civilização Brasileira
Ano: 1975
Páginas: 162
Tradutor: Ivo Barroso
Perfil do livro no Skoob:https://www.skoob.com.br/demian-1420ed451597.html