quarta-feira, novembro 27, 2024

Ainda estou aqui - Um brado por justiça



Vinte de janeiro de 1971. Seria um feriado como outro qualquer, não fosse a prisão clandestina, o sequestro e desaparecimento de um homem. E o crime foi perpetrado por agentes do Estado Brasileiro. Rubens Beyrodt Paiva, ex-deputado cassado, engenheiro, foi rendido em sua casa por militares da aeronáutica e conduzido para interrogatório. A família não imaginava que nunca mais o veria.

Esse é o fato sobre o qual gira o livro Ainda estou aqui. Um acontecimento histórico, investigado e documentado. O que mais assusta é que, décadas depois, o caso está longe de ser solucionado. Afinal, ele atesta crimes realizados por agentes do Estado, com a convivência do regime vigente. O que se sabe do caso é que Rubens Paiva morreu em decorrência das torturas sofridas. Seu torturador e assassino, já falecido, foi devidamente identificado. A localização do corpo, porém, ainda é um mistério.

O livro, escrito por Marcelo Rubens Paiva, renomado e premiado escritor, filho de Rubens Beyrodt Paiva, nos guia por memórias pessoais, registros históricos e depoimentos, de forma que o autor busca montar um quebra-cabeças em que há peças faltando, praticamente impossíveis de serem recuperadas. Outro ponto importante da narrativa é a luta de Eunice Paiva, viúva da vítima. Uma mulher forte, assertiva, que aos 41 anos se viu sem o marido, com cinco filhos para cuidar. Decide então batalhar duro, estudar Direito. Torna-se uma referência no Direito dos Povos Indígenas, com contatos como Ailton Krenak.

Por fim, apresentado de forma entrecortada, está o doloroso processo do surgimento e evolução do Alzheimer de Eunice Paiva. O autor narra o adoecimento dessa mãe que sempre foi referência de mulher forte e decidida. Uma mulher prática. Não é sem pesar que ele descreve os sintomas e estágios de evolução da doença.

É um livro sobre memória mas também sobre esquecimento. Uma narrativa que busca, de forma contundente e encarnecida, reconstituir todo o cenário e contexto do desaparecimento de Rubens Paiva. É também uma obra sobre os melhores anos de um menino, e como sua vida foi arrancada desse ambiente idílico e lançada rumo a uma nova realidade. E a crueldade da vida é tão grande que além de ter perdido o pai no início da adolescência, o autor tem que testemunhar também o definhamento da mãe, seu desaparecimento em vida. Apesar disso, Eunice declara, de tempos em tempos: Ainda estou aqui. É um brado de protesto contra o próprio sumiço dentro de si. Uma declaração de vida e resiliência.

Trata-se, portanto, de um intrincado emaranhado de narrativas, guiadas magistralmente por um artífice da palavra. Marcelo Rubens Paiva tem uma prosa cativante, um misto de confidência com testemunho, narrado na melhor forma. Seria um livro árido, não fosse o trabalho excelente que o autor faz da linguagem, relacionando acontecimentos, lembranças, notícias e depoimentos. Uma obra que busca lançar luz a um evento sombrio e também procura ainda que um mínimo senso de justiça.

Como apêndices, estão a denúncia do crime contra Rubens Paiva e seu acolhimento judicial. Realizei a leitura de ambos com grande pesar. É de fundamental importância que esses apêndices sejam de conhecimento geral, por um mínimo de reparação histórica. Esses documentos expandem a experiência de leitura e tornam o caso ainda mais palpável, ao oferecer detalhes do que já foi apurado sobre o acontecimento, o que contribui para a sua memória histórica

Por fim, uma nota que aponta que o caso está suspenso pelo STF. O que mostra que o brado por justiça continua a morrer na boca de todos aqueles afetados pelos crimes hediondos contra a humanidade promovidos pela sanguinária ditadura iniciada em 1964.


quarta-feira, novembro 20, 2024

Reencontros literários e novas amizades em Carmo da Mata

Autoras e autores em Carmo da Mata

Era uma quinta-feira. O dia estava nublado e a temperatura amena. Um ônibus com destino a Lavras, vindo de Divinópolis, parou diante da Igreja Matriz de Nossa Senhora do Carmo, em Carmo da Mata, Minas Gerais. Dela desceu um escritor esbaforido e entusiasmado. Essa pessoa era eu.

Estávamos no início de novembro. Dia 7, para ser mais preciso. Meus olhos esbanjavam encantamento por estar mais uma vez nessa cidade onde tantas coisas boas aconteceram, um ano atrás. Estava lá para mais uma edição da Flicar - Festa Literária de Carmo da Mata. Criado e organizado por Júnia Paixão, o evento é uma celebração da Literatura, com diversas atividades propiciando a reunião de autoras e autores com o público leitor. É um momento também de renovar amizades e formar novos laços de companheirismo. 

E foi isso mesmo que aconteceu. Revi muita gente que conheci na última Flicar: Mírian Freitas, Júnia Paixão, Servos Cardoso, Luiz Eduardo de Carvalho, Pedro Gontijo, Thaís Campolina, Hércules Toledo Corrêa e seu marido, Fred. Reencontrei a Gilberta Kis, companheira do Pedro Gontijo, que ele me apresentou no Flipoços, em Poços de Caldas. Tive também o privilégio de encontrar a professora Carla Coscarelli, que me deu aula há mais de vinte anos no curso de Letras da UFMG, e a professora Ana Elisa Ribeiro, premiadíssima, que também me deu aula na UFMG e hoje é professora titular do curso de Letras no CEFET-MG. Reencontrei a escritora e poeta Ana Paula Dacota, com quem pude estreitar os laços de amizade. Esteve lá tamém a Ilma Pereira, que conheço de eventos anteriores e da Liga de Autores Mineiros. Pude rever a Marcela Fassy e a Carla Andrade, que eu já admirava e pude conhecer pessoalmente no lançamento do livro Damascos feridos, da Mírian Freitas, ocorrido em Belo Horizonte. Conheci a escritora Mara Senna e a professora pesquisadora Débora D'ávila Reis. 

Fui apresentado a outras pessoas, como a autora Amanda Ribeiro, que realiza incríveis vídeo-poemas. Além disso, havia uma galera incrível da graduação e da pós-graduação em Letras do CEFET-MG. 

A programação foi rica e diversificada. A abertura, ainda na quinta-feira, contou com um sarau e uma apresentação teatral. Em seguida, foi o lançamento conjunto de várias pessoas, eu entre elas. Lancei meu livro de poesia Cicatriz com muita alegria. Aproveitei para descobrir os livros das pessoas que estavam lançando comigo. Foi maravilhoso.

Na sexta de manhã, realizei na Escola Estadual Joaquim Afonso Rodrigues uma oficina chamada "Meu Primeiro Livro". Os estudantes se envolveram e participaram ativamente, ficando encantados com a proposta. Em seguida, participei da oficina de criação de zine da Carol Vasconcellos. 

Nessa mesma sexta, às 17h, tive o privilégio de participar da mesa "O lugar da Poesia na Contemporaneidade", juntamente com Alex Zani, Mírian Freitas, Mara Senna e Thaís Campolina. A mediação coube a Alícia Teodoro, que fez uma primorosa condução. 

A Festa continuou linda com outras mesas de debate e apresentações literárias. A programação completa pode ser conferida aqui: @filcar_carmodamata. O encerramento aconteceu no sábado, à noite. Porém, eu ainda aproveitei o domingo para curtir Carmo da Mata com algumas pessoas amigas. Foram momentos descontraídos de relaxamento, após as intensas atividades da Festa. Voltei para casa na segunda-feira, com a mente cheia de boas memórias e a mala repleta de livros!

Livros de autoras e autores da Flicar.

Fica registrada aqui minha gratidão à pessoa da Júnia Paixão por mais uma vez acreditar no meu trabalho e ter me permitido participar da programação de um evento tão incrível. E também a Carmo da Mata, pela acolhida sempre tão generosa!


Domingo em Carmo da Mata


Para homenagear a Flicar, fiz um poema, que transcrevo abaixo:

Celebração 


Entre badaladas e anúncios fúnebres, 

a Palavra era celebrada.

Gotas fortes de chuva molhavam 

os caminhos dos livros abertos. 

Os corpos se encantavam 

em meio a tanta água.

Linhas cruzadas, papel e caneta, 

furiosa busca. 

Histórias se derramando, líquidas, 

sobre ouvidos e olhos atentos. 

Na melodia das gotas sobre a lona 

a valsa literária embalava os presentes. 

Não havia tempo. Nem memória. 

Tudo era força e beleza. 

Potência decantada 

e luz.

Carmo da Mata, 11 de novembro de 2024

quarta-feira, novembro 06, 2024

As dimensões da alma

Imagem por Janine Bolon de Pixabay


Certa vez, um médico resolveu pesar uma pessoa às portas da morte. Repetiu a pesagem logo que a pessoa morreu. O resultado deu uma diferença de 21 gramas. Com isso, passou-se a considerar que o peso (ou a massa) de uma alma seria justamente de 21 gramas.

A suposta experiência carecia porém de rigor científico. Essa ideia da massa da alma, da vida de uma pessoa, perdurou por décadas. Chegaram a fazer um filme disso. Hoje em dia, já foi desconstruída. Se a alma tem uma massa, ainda não foi possível mensurá-la.

O legista faz uma autópsia. Disseca o corpo de alguém. Retira os órgãos um a um e os pesa. Até mesmo o cérebro é pesado. Tudo é anotado meticulosamente. Depois, os órgãos são colocados de volta no lugar e o corpo é novamente costurado. Não foi encontrado vestígio de alma.

Nos rituais de embalsamamento do Egito Antigo, os órgãos também eram retirados, inclusive o cérebro. No lugar deles, eram colocadas flores. Ao invés de serem descartados, os órgãos ficavam guardados em ânforas. Ainda assim, nem mesmo os egípcios foram capazes de mensurar as dimensões da alma.

Talvez ela esteja só escondida no emaranhado de vísceras de nossos corpos. Talvez habite na língua, esse poderoso músculo que nos conecta a outras pessoas. E nos separa também. Ou quem sabe cada um dos nossos órgãos escondam em si um pedaço da alma.

O corpo continua um mistério no que toca à questão da transcendência. A alma permanece inalcançável para os instrumentos científicos, por mais avançados sejam. Estaríamos fadados ao completo esquecimento? Seria a alma um delírio? As religiões afirmam sua existência, apesar do ceticismo cansado de tantos cientistas.

A alma e sua massa continuam a nos despistar. Talvez seja porque não é possível pesar o que é etéreo. As leis da física não se aplicariam ao sobrenatural. Ou talvez tudo não passe de um mero delírio de quem não quer, com sua morte, desaparecer.



 

sexta-feira, outubro 25, 2024

Cicatriz - Meus versos ganham páginas impressas

 

Quem acompanha este blog sabe dos meus experimentos poéticos. Há anos eu publico aqui um ou outro poema. Ando meio parado, é verdade, mas não deixei de correr atrás do meu fazer literário. Continuo escrevendo - inclusive poesia. Portanto, é com muita alegria que anuncio a publicação do meu livro Cicatriz. Trata-se de uma seleção de poemas, muitos deles publicados aqui no blog. 

Este é um livro em que a memória é abordada de forma dolorosa, bem como o aturdimento diante do absurdo que é viver. Sim, viver muitas vezes parece arbitrário e absurdo e o eu poético em Cicatriz questiona-se diante da vida e do mundo. Há também poemas políticos, homenagens e poemas de amor. 

O livro é publicado pela editora Litteralux (antiga Penalux) e conta com a orelha de Mírian Gomes de Freitas. Ele será lançado nas seguintes datas e locais:

Dia 31 de outubro de 2024, às 20h, no FLITABIRA.



Dia 6 de novembro de 2024, às 19h no bar O Boêmio. Av. dos Andradas, 367 - Lj 236C 1º andar - Centro, Belo Horizonte - MG


No dia 7 de novembro, às 19h30, estarei no lançamento coletivo da Flicar - Festa Literária de Carmo da Mata.



Dia 23 de novembro de 2024, às 10h30, na Biblioteca Pública Infantil e Juvenil de BH. 



sexta-feira, outubro 18, 2024

Értom - Convivendo com a morte



Ângela tem premonições de gente morrendo. E não são apenas visões, mas experiências vívidas de morte. Ela sente como se morresse junto com a pessoa. Isso causa um profundo estresse na mulher, que desenvolve uma forte fobia social e busca, de todas as formas, isolar-se. Quando ela testemunha um atropelamento, o policial Rafael entrará na sua vida e a transformará para sempre, mesmo contra a sua vontade.

Assim tem início o romance Értom, de Bianca Pontes. O enredo nos leva a testemunhar os problemas de Ângela Értom, seus desafios diários, seu refúgio em um prédio em que mais ninguém mora, a companhia da avó morta, que a assombra. E Rafael. O policial é insistente em fazer de tudo para ajudar a mulher. O que antes parece ser um forte senso de dever se transforma em paixão, que é rapidamente correspondida.

Rafael é o modelo de galã. Bonito, forte, charmoso, lutador de artes marciais e policial exemplar. Ele não consegue esconder o interesse por Ângela. A estratégia para romper as defesas da moça será o cão policial idoso Zeus, um pastor alemão carismático capaz de derreter qualquer gelo.

Ao longo da narrativa, o foco passeia entre Ângela e Rafael, de forma por vezes até abrupta. O leitor tem que se manter atento para perceber com quem está o foco narrativo. Trata-se de uma narradora onisciente neutra, que revela a nós, leitoras e leitores, o que Ângela ou Rafael pensam, suas inseguranças, seus medos e os questionamentos que pipocam em suas mentes nesse complicado jogo de conquista.

Trata-se de uma conquista, sim. É uma história de amor, afinal. Porém, é possível perceber que tanto Ângela quanto Rafael buscam se entender, antes de tudo. A química amorosa é consequência. Intrigado com a mulher que vive isolada de tudo e todos, resistente até a pedir ajuda médica com um braço quebrado, Rafael sente-se no dever de ajudá-la, de entendê-la. Ela se torna um enigma a ser decifrado. 

A avó de Ângela surge como um grilo falante incômodo. Um cacoete de consciência, misturado com pensamento intrusivo, o que torna a vida de Ângela um inferno, ao mesmo tempo que nos diverte na leitura. Os diálogos com esse fantasma são uma forma de humor sombrio, ao mesmo tempo um alívio cômico, uma vez que os comentários da idosa são espirituosos. 

As relações humanas são o grande foco de Értom. Não é o sobrenatural ou mesmo as investigações do diligente policial. Bianca Pontes reflete sobre sofrimento mental, (des)crença, empatia e paixão. Rafael e Ângela sentem um magnetismo forte entre eles. Não sem acidentes, é claro, pois todo relacionamento é feito deles. Rafael luta para entender o problema de Ângela e quer ajudá-la. A questão maior é justamente a abordagem equivocada do policial.

Só que esta é uma história de amor, antes de tudo. Com mortes, visões sombrias, sofrimento, pânico e um fantasma incômodo, mas não deixa de ser uma história romântica. Uma narrativa que aposta no amor acima do sofrimento e dos desencontros. E que acredita que almas que se amam são capazes de vencer tudo, até mesmo a morte.


Ficha Técnica

Értom

Bianca Pontes

ISBN: B0DDK149FJ

Ano: 2024 

Páginas: 184

Idioma: português

Editora: Bianca Pontes


Perfil do livro no Skoob: https://www.skoob.com.br/ertom-122490552ed122490967.html

quinta-feira, outubro 03, 2024

Lançamentos do livro "Achei que você fosse o outro"



Faz tempo que tentava publicar um livro com o Rodrigo Teixeira. Escritor nato, talentoso e genial, Rodrigo mantinha um blog chamado "Bom Dia, Mudo Cruel!" que eu frequentava assiduamente. Esse blog, porém, foi descontinuado, embora permaneça online, com os textos do Rodrigo na nuvem. Recomendo muito o acesso. 

Enfim, desde que eu publiquei a primeira vez, há onze anos, sentia que era uma injustiça não ver os textos do Rodrigo impressos em papel, organizados em livro. Desde que nos conhecemos e nos aproximamos, surgiu a ideia da publicação conjunta. À época, havia uma terceira pessoa nesse projeto, mas a tríade não se sustentou. Ficamos apenas nós dois. E assim, entrava ano, saía ano e nada da gente publicar. 

Os textos foram organizados e reorganizados, revisitados várias vezes. Exigente, Rodrigo confessava que, a cada revisão, retirava um texto. Exasperado, instei que a gente publicasse logo, com medo de no final sobrarem somente os meus textos. Assim, fechamos uma versão final do livro conjunto.

Havia agora um outro desafio: Qual título dar para a obra híbrida? Deveria ser algo que representasse nossa amizade e parceria. Como sempre, Rodrigo teve uma sacada genial, retirando sua ideia de um incidente pitoresco. 

O ano era 2019. O local, o Centro Cultural Usina de Cultura, no bairro Ipiranga, em Belo Horizonte. Eu havia comparecido ao evento pela manhã, cumprimentado todos, curtido a programação. Rodrigo estava escalado para uma roda de conversa às 16h e chegou já no período da tarde. O problema é que ninguém o cumprimentava. As pessoas passavam por ele e o ignoravam. 

Ele começou a ficar preocupado. Já se perguntava o que estaria acontecendo quando o poeta e multiartista Dione Machado passou por ele, parou, voltou e disse: "Ué, achei que você fosse o outro!" Rodrigo então entendeu. As pessoas já haviam me cumprimentado pela manhã e, como é costume nos confundirem, achavam que eu e ele fôssemos a mesma pessoa. 

Isso é mais comum do que as pessoas que não nos conhecem podem pensar. Trabalhamos juntos no mesmo lugar, a Biblioteca Pública Infantil e Juvenil de Belo Horizonte. Em diversos momentos tem gente trocando nossos nomes ou perguntando se somos irmãos. 

Ao se lembrar do incidente, Rodrigo chegou ao nome do livro: Achei que você fosse o outro. Contratamos o serviço do Selo Editorial Starling para a produção e impressão. Como podem constatar, resultado ficou lindo. 

Fizemos dois lançamentos. O primeiro foi conjunto, na Biblioteca onde trabalhamos. Foi em um sábado, dia 6 de julho de 2024. O segundo foi no Sarau do Coletivoz, numa quarta-feira, dia 10 de julho no The Wall Pub, em Contagem. Tivemos a presença do Coletivo Simples e também de representantes do Movimento Arte Contra a Barbárie. Já  terceiro e "oficial" foi no bar O Boêmio. Um momento de muita alegria e pertencimento. Além de muita cerveja! Pudemos nos três eventos encontrar amigos que nos apoiaram de forma tão presente. 

E por fim, fizemos parte de um lançamento conjunto na Sétima Candeia - Mostra Internacional de Narração Artística. Foi lindo, também!

Agradeço imensamente a todo mundo que participou de algum dos lançamentos. Sou grato também a quem não pode ir mas comprou um exemplar com a gente!

Seguem agora algumas fotos para ilustrar esses momentos marcantes em nossa trajetória literária.















quarta-feira, setembro 04, 2024

Nos desvãos das palavras - Nuvens


Até onde uma palavra pode ser explorada? Felipe Diógenes, com seu livro Nuvens, explora os limites do uso não-utilitário das palavras, procurando combinações das mais inusitadas, elaborando assim elementos fantásticos em imagens oníricas e metáforas inventivas.

Há algumas palavras recorrentes. Uma delas é catacrese; a outra, talisca. Os sentidos das palavras são esgarçados, não importa o sentido, o que mais importa é a sua sonoridade e a composição onírica das construções metafóricas.

Claro discípulo de Manoel de Barros, Felipe Diógenes procura explorar os sentidos simples das palavras, mas também seu esvaziamento. Cria novas possibilidades de sentido e não-sentido. A memória e sua fugacidade também é abordada nos poemas. A brincadeira de confundir olvido com ouvido é primorosa e bem-humorada. 

A palavra se afasta totalmente de seu viés utilitário, levada a alçar voos, inaugurando sentidos oníricos. “mas pedra é igual equivalência de nuvem”. Nesse verso, presente no primeiro poema do livro, Felipe dá o tom da sua obra, em que os sentidos se entrelaçam. Pedra e nuvem se aproximam e um universo maravilhoso é criado como numa tela surrealista. 

Mas antes mesmo do primeiro poema há uma epígrafe de Manoel de Barros: 

“Repetir repetir – até ficar diferente./Repetir é um dom do estilo.”

E para seguir os versos de seu mestre, Felipe Diógenes repete até ficar diferente. Suas ideias são recorrentes, como a exploração imagética e sonora das palavras. Criando novas fronteiras, o poeta lança mão de sua genialidade para produzir poemas que nos cativam por sua sonoridade e pelas construções inusitadas.

Outra sacada genial de Felipe Diógenes é usar a palavra quase, desconstruindo as palavras colocadas ao lado desta: “quase rua”, “quase todo”, “quase peixe”, “quase fogo”. Numa sanha de desconstrução, Felipe devassa a língua, tornando-a algo mais, como que inaugura uma outra língua, um código secreto, reservado apenas aos iniciados.

A poesia de Felipe Diógenes é incômoda, como toda boa poesia. Como toda poesia genial. Ele nos toma pela mão e nos guia por um caminho caleidoscópico, em que sons e sentidos se misturam, num verdadeiro emaranhado onírico de imagens.


Ficha Técnica:

Nuvens

Felipe Diógenes

Editora Patuá

2024

54 páginas

Perfil do livro no Skoob: https://www.skoob.com.br/nuvens-122497045ed122497523.html

sexta-feira, março 29, 2024

H.R.




Teu nome 

continua 

retumbando 

em meu peito. 

Um nome 

forte e cálido, 

firme como 

o mármore 

mas 

que evoca 

múltiplas existências 

das correntes. 

Nunca mais te vi, 

mas tua beleza 

continua a assombrar 

meus dias 

e inflamar 

minhas noites.

sexta-feira, março 22, 2024

Outro exercício de método



Quero escrever 

Poesia 

mas não sei 

se consigo 

transformar

em matéria 

das palavras 

a angústia 

reinante 

em mim. 

Então eu me

limito a deixar 

o pensamento

fluir, para não 

se represar 

e estagnar 

em meu ser.

sexta-feira, março 15, 2024

sexta-feira, março 08, 2024

Estou cansado


Estou cansado. 

Meu cansaço 

é antigo. De eras. 

Durmo mas não 

descanso. 

Sou um corpo 

insone 

que vaga pela terra 

buscando paz. 

Mas o que ele vê 

é guerra.

sexta-feira, março 01, 2024

Olho sua foto


Olho sua foto 

e meu coração dói 

por saber 

que você 

nunca 

estará em meus 

braços. 

Essa certeza me 

dilacera por dentro. 

A solidão 

de não ter você 

é aquela que 

perfura mais 

fundo. 

sexta-feira, fevereiro 23, 2024

Hackeado


Somos parasitas

destes corpos

a consciência 

é um vírus

feito para 

corromper

a máquina

biológica.

Ser Humano é

o veneno da

Vida.


26/04/2019

quarta-feira, fevereiro 21, 2024

Ele

 

https://www.reddit.com/media?url=https%3A%2F%2Fi.redd.it%2Feah9155brzb21.jpg

Acendi um cigarro. Pus na boca e não traguei. Nunca trago. Quero apenas me fazer de James Dean. Rebelde sem causa. A fumaça dança sobre meus olhos. Lá fora, chove. Qual nada, é só uma garoa fina.

O som da porta se abrindo chama a minha atenção. É ele. Frio na barriga. Fogo quando sorri. Ele senta ao meu lado e tira o cigarro da minha boca. Traga, solta a fumaça pro lado em que não estou e apaga no cinzeiro. 

Ah, como ele é lindo. Queria ter sido o cigarro, mesmo que fosse esmagado depois. Pelo menos, teria provado aqueles lábios.

Tenho um poema pronto. Leio pra ele. Uma porcaria, ele diz. E depois completa: Tô brincando. Gosto de tudo que você escreve.

Nessas palavras eu morro. Pela terceira vez no dia. Lá fora, a garoa lava nossas memórias. 


segunda-feira, fevereiro 19, 2024

Dorohedoro - 1a Temporada

Fonte: Netflix

Um homem com cabeça de lagarto não tem memória e busca de todas as formas recuperar o que perdeu, tanto sua forma original quanto a memória perdida. Vivendo em um mundo sujo e sombrio, ele enfrenta perigos com suas duas facas afiadas e sua força descomunal.

Dorohedoro  é um anime de ação e aventura, com motivos de terror. Ele conta a história de Caiman, um homem com cabeça de lagarto, que caça feiticeiros, sem busca daquele que o tornou daquele jeito. Caiman conta com a ajuda de Nikaido, uma cozinheira e lutadora. Há outras pessoas que o ajudam, como o médico do hosptial que cuida de pessoas vítimas de magia.

Eles moram no Buraco, um lugar feio e sujo, caótico e distópico. Os feiticeiros saem de seus mundos por portas mágicas para usar seus feitiçõs nos humanos, moradores do Buraco. Muitas são suas vítimas, que costumam ficar desfiguradas.

É um anime bem caótico e disruptivo. O mundo dos feiticeiros é repleto de demônios e referências infernais. Há cruzes de cabeça para baixo em igrejas onde demônios são cultuados. É uma forte carga de ironia na animação.

Cada feiticeiro é especializado em um tipo de feitiço. En, o figurão do mundo dos feiticeiros, transforma seres vivos em cogumelos. Ele é dono de várias empresas e dispõe de muita fama. Tem como inimigos a gangue dos olhos cruzados, que vende um pó preto que pode aumentar temporariamente o poder dos feiticeiros. 

Para eliminar os membros da gangue, En conta com Shin e Noi, dois "faxineiros", ou matadores profissionais que atuam de forma implacável e brutal. Cada um deles tem sua história e suas motivações pessoais. Shin e Noi são incrivelmente fortes, dando grande trabalho para Caiman e Nikaido.

Por último, temos a dupla Fujita e Ebisu. Fujita é um feiticeiro pé-de-chinelo que busca vingança contra Caiman, por este ter matado seu melhor amigo, Matsumura. Já Ebisu tem o poder de transformar seres vivos em répteis. Ela foi atacada por Caiman e saiu gravemente ferida, com um trauma que afetou sua memória e intelecto.

Dorohedoro tem outras personagens, que vão surgindo e tornando a trama ainda mais caótica. O mundo dos feiticeiros é rico e complexo, sendo um contraponto ao Buraco, com sua feiura e decadência. E muita coisa fica sugerida, muitas são as perguntas. Quem é o cara que aparece dentro da boca de Caiman, sempre que ele abocanha um feiticeiro? Qual a verdadeira identidade do homem-lagarto? E Nikaido, quais são suas reais motivações?

Esta é uma adaptação do mangá homônimo da autora Q Hayashida

Com uma animação primorosa e muita ação, Dorohedoro é um anime interessante e imersivo. Uma excelente escolha para quem quer se divertir e não tem medo de uns diabinhos e um monte de sangue.

sexta-feira, fevereiro 16, 2024

Dissoluto

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Dedos deslizam

em minha pele.

Cada toque leva

um pouco de mim.

Sou luz

E dissolução.

Refaço notas

de uma ária

selvagem.

Sou o único 

habitante

de um universo chamado:

Espera.

E resignado deixo

que o vento entoe

Canções que nunca

dizem quem sou.

quarta-feira, fevereiro 14, 2024

Grande novamente

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Não me lembro de ter sentado no colo de meu pai. Lembro-me, sim, de ter subido em seus ombros. Segurava com minhas mãos pequenas a sua grande testa e repousava o queixo em sua cabeleira farta. Meu pai era um homem baixo. Pra mim, porém, era enorme.

O tempo e um divórcio nos afastou. A distância também se fez presente no campo físico. Cidades e estados diferentes nos separavam. Meu pai, antes enorme, foi diminuindo até desaparecer. Até mesmo das fotografias.

Certa vez, viajamos para o Rio e minha mãe tentou uma reaproximação nossa com o meu pai. Ele estava em seu terceiro casamento, e um quarto filho, que a gente não conhecia. Ele resolveu sair do Realengo e nos visitar lá na Tijuca onde estávamos hospedados. Foi assim. A campainha tocou. Fui até a varanda do apartamento de segundo andar para ver quem era e deparei-me com ele, com sua baixa estatura (ainda era alto pra mim) e seus olhos azuis. Estava com a mão erguida na altura dos olhos, para protegê-los do sol.

Com o choque, corri e me escondi debaixo da cama. Sentia pânico desse estranho tão familiar, tão meu. Minha mãe foi me buscar e tentar reconciliar-me com o meu pai. Não foi fácil, mas no fim, eu aceitei sua presença e partimos, com meu irmão e minha irmã, para o Realengo.

No caminho, paramos em um açougue. Meu pai comprou alguns quilos de carne para nós. Era uma época em que carne era sempre uma festa. Ele pediu que o açougueiro passasse o bife "naquela máquina esperta". O efeito da tal máquina era deixar o bife mais macio, creio eu. Um rolo compressor com pinos que espremiam a carne. Mas a coisa mais curiosa era que o pedido de meu pai me fez sentir orgulho dele. Era como se tudo que meu pai fizesse ou falasse fosse algo digno de nota, tamanho era meu deslumbramento. Naquele momento, em que fazia um pedido trivial cheio de maneirismos e da simpatia carioca, meu pai ganhava dimensões quase míticas. Ele era novamente grande. Melhor ainda, era meu.


segunda-feira, fevereiro 12, 2024

Aprendiz da imperfeição - Alcançando o inalcançável



O menino busca em um velho pintor o mestre que precisa. O pintor reluta em aceitá-lo como aprendiz e, mesmo após fazê-lo, não lhe dá aulas, deixa apenas que o garoto cumpra tarefas domésticas e lixe as telas até ficarem lisas o bastante. Mas nunca é o bastante.

Um dia, o pintor ordena ao aprendiz que se ausente por um  certo tempo. Quando retorna, o garoto vê que o mestre terminou a obra da sua vida, uma tela perfeita, que atrai muitos admiradores. Mas a perfeição é insuportável para o velho mestre. Nem vendê-la ele consegue. Como seguir com sua vida, agora?

O livro Aprendiz da imperfeição, de Pieter van Oudheusden e Stefanie De Graef, carrega uma narrativa profunda que se constitui numa fábula sobre a enganosa busca pela perfeição, que é intangível. Não que essa busca não seja importante, mas o fundamental é o processo e não o resultado; o caminho e não o fim. 

É curioso que quando vai executar a obra-prima, o ancião manda o aprendiz se ausentar, como se fosse necessário que cada um buscasse seu próprio caminho de perfeição. Esse caminho não pode ser copiado, é íntimo e secreto. Sem questionar, o menino obedece. Outra questão interessante é o aprendizado pela observação. As lições tomadas pelo aprendiz foram longas e silenciosas caminhadas. Nelas, o mestre parava para contemplar e era também contemplado pelo aprendiz, que buscava capturar o olhar do velho pintor.

Por fim, ressalto que produzir a obra prima poderia ter causado um efeito no mestre de forma a concluyir que não haveria mais nada a ser feito. Po´rem, não é isso que o velho pintor quer. Ele não quer se aposentar, não quer descansar, não quer viver no luxo e na riqueza. Ele quer continuar procurando. E creio que sua conclusão foi que a busca pela imperfeição calculada, deliberada, é tão desafiadora quanto a busca pela tão alardeada perfeição.

Observei que foi escolhida a ilustração digital como técnica para os desenhos. Essa escolha a princípio me incomodou, mas então percebi que os desenhos dialogam como essa idiea de perfeição, com um elemento figurativo quase perfeito, mas cores brutas, marcantes. Não são desenhos com texturas suaves, mas cores chapadas, o que a proxima a ilustração da ideia de imperfeição. Há um certo diálogo estético com as ilustrações orientais antigas, mas como uma sutil referência.

Quanto à linguagem, o texto é leve, poético e repleto de pausas. É um texto maduro, difícil mas igualmente compensador. Senti-me comovido por vários momentos enquanto eu lia.

Talvez, entender a imperfeição como seu novo e verdadeiro ideal, o velho pintor tenha alcançado uma certa paz; uma paz que o fez ver para além da aparência. Ou não. Talvez o tenha percebido que a perfeição é mesmo insuportável e que escapar dela também pode ser uma dádiva.


Ficha Técnica

Aprendiz da imperfeição

Pieter van Oudheusden, Stefanie De Graef

Tradução de Cristiano Swiesele do Amaral

ISBN-13: 9788564974630

ISBN-10: 8564974630

Ano:2015 

Páginas:32 

Idioma: português

Editora: Pulo do Gato


Perfil do livro no Skoob: https://www.skoob.com.br/aprendiz-da-imperfeicao-575210ed576125.html

sexta-feira, fevereiro 09, 2024

Canto

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Beija-me com os beijos 

de tua boca 

porque mais saborosos 

são teus beijos 

que o chocolate.


Não te comparo 

às éguas do Faraó, 

mas às possantes 

Ferraris 

do mais recente popstar. 


De teus lábios 

destilam 

as salinas mais seletas 

jorram saborosas 

cervejas de trigo 

frutadas 

encorpadas 


Beija-me 

mas não quero 

amor casto 

quero carne dos teus lábios 

Sangue e seus períodos 

fluidos e odores 

e bagunçar teus cabelos.


Quero-te nua 

não santa 

ou puta 

só tua. 

Quero-te fogo 

deusa 

potência. 

Quero-te para além 

dos sentidos 

Para além das palavras 

e seus desvãos.

Beija-me.

quarta-feira, fevereiro 07, 2024

De mudança em mudança

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Minha infância foi pautada por mudanças. Do Rio de Janeiro para Belo Horizonte, Minas Gerais, de volta ao Rio e depois para Teófilo Otoni, em Minas. Nessa cidade do interior de Minas, também me mudei algumas vezes. No fim da infância, viemos todos para Belo Horizonte, onde estamos estabelecidos desde então.

Da mudança para Teófilo Otoni, lembro-me da viagem para lá. Eu tenho essa memória de acordar ainda no ônibus e ver morros suaves no lugar de montanhas. Esses morros eram salpicados de árvores e davam uma paz tão grande! Estava curioso com a nova cidade onde moraria. É engraçado como não me lembro bem do processo de mudança. Só me lembro de estar lá, já estabelecido, nem desfazer minha mala está em minha memória. Talvez eu mesmo não tenha desfeito essa mala, por conta da idade.

Lá em Teófilo Otoni, fui matriculado em uma escola pequena, particular. Algo que levei comigo foi a dificuldade de aprendizado. Uma das coordenadoras chegou a sentar do meu lado e tentar me explicar algo básico: como copiar um texto sem transcrever palavra por palavra, mas a frase toda. Ela dizia: "Leia a frase inteira, ou um pedaço dela, guarde essa frase na cabeça e depois escreva no caderno." Nem isso eu conseguia. Ela acabou desistindo. Depois, fui para uma escola pública que levava o nome da cidade. Foi lá que eu descobri o prazer da leitura.

Da separação dos meus pais, levei os vazios das fotos. Digo vazios porque um dia eu e minha irmã cortamos nosso pai das fotografias, achando que ele era um estranho. Perguntamos para minha mãe se podíamos cortar o estranho das fotos e ela autorizou.

Em Teófilo Otoni, encontramos novas possibilidades de existência. As mudanças, porém, não acabaram. Do Centro, nos mudamos para o Boiadeiro e, de lá, para o Bairro São Jacinto. No Boiadeiro conheci a arte de amar as galinhas. Tive uma de granja, toda branca, que amei até ela desaparecer na vida. Ou na panela, talvez. 

No São Jacinto criamos coelhos, além das galinhas. Fomos morar em uma casa bem simples, com paredes de barro que descarnamos do reboco numa reforma. A casa foi transformada. Porém, antes de ficar pronta, partimos para Belo Horizonte. 

Nossas vidas de mudanças não acabaram, porém. Em Belo Horizonte, conhecemos os bairros Lagoa e Jardim Europa. Nosso pouso definitivo foi no Céu Azul, numa região conhecida como Garças. 

Ah, quem dera aquele lugar fosse um paraíso. Revelou-se purgatório, ao menos. Descarregar tijolos, peneirar areia, levar baldes de cimento nas costas. Todo esse trabalho foi para erguer uma casa do zero. E se tornou a casa de minha mãe e meu padrasto, até hoje. Quase trinta anos se passaram e essa casa nunca ficou pronta completamente. Seu projeto original nunca foi concluído e ela passa por reformas que a alteraram completamente. 

Trinta anos. Sim, após uma infância repleta de mudanças, estabeleci-me em Belo Horizonte. Essa família que chamo de minha, fragmentada e remendada novamente, reconfigurada a partir de novos integrantes, é também reflexo da minha própria existência, fragmentada, dividida e reconfigurada. E continuo buscando um sentido. Não sei qual, mas sigo em busca. O que fazer quando encontrá-lo? Aí, sim, talvez minha vida comece de verdade.

segunda-feira, fevereiro 05, 2024

Via Ápia - Cinco vidas, uma invasão


Washington e Wesley são irmãos. Ambos trabalham em uma casa de festas. Enquanto Washington é movido pela força do ódio, Wesley segue suave, juntando seu dinheiro e planejando o futuro. Os dois moram na Cachopa, com sua mãe, Dona Marli. Douglas é entregador em uma farmácia. Murilo é militar e Biel levanta algum dinheiro ocasionalmente vendendo drogas. Os três moram em um apartamento na Via Ápia, principal rua comercial e residencial da Favela da Rocinha.

A vida desses cinco jovens muda para sempre quando a UPP - Unidade de Polícia Pacificadora - invade a Rocinha, instalando um ambiente de horror para os moradores.

Via Ápia, primeiro romance de Geovani Martins, é um visceral relato de denúncia da violência policial na guerra às drogas. O romance não procura idealizar o uso de drogas ilícitas, algo largamente consumido na favela, mas busca traçar uma trajetória contrária à criminalização. O que está em voga é a exclusão social, que potencializa a violência, e a desigualdade.

É impossível não torcer por esses cinco jovens, todos usuários de maconha, para que seu destino não seja como de tantos outros: estatísticas da violência policial e social.

Geovani Martins escreve um livro controverso e ousado, usando do registro linguístico da favela, sem no entanto soar hermético ou forçado. Sua habilidade traz naturalidade à narração e às falas.

Os personagens passam por profundas transformações, tanto para o bem quanto para o mal. Cada um deles é movido por um sonho, um anseio. Douglas quer ser tatuador. Washington deseja um trabalho com carteira assinada. Murilo anseia sair do exército. Wesley sonha ser mototáxi. E Biel? Biel, antes de tudo, quer pertencer a algum lugar. 

Outras personagens se destacam na narrativa. Uma delas é Gleyce Kelly, que divide os corações dos amigos Washington e Douglas. Gleyce tem o desejo de fazer faculdade, de cursar cinema. Sua luta por um futuro é pautada pela educação. Dona Marli, mãe de Washington e Wesley, também se destaca, por sua força e resiliência, por ter criado sozinha dois homens, incutindo neles o senso de honestidade e de trabalho.

Cada personagem tem sua profundidade e seus conflitos. A revolta pela violência que sofrem da polícia é uma constante. Eles não querem se adequar, se acostumar. São inconformados com o sistema. E com razão.

Vivem uma realidade dura, de falta de água e de energia, da ameaça constante da polícia. Sim, aqui a polícia é duramente criticada. Corrupta e despreparada, ela entra na favela para esculachar o cidadão. Portanto, o texto é direto em suas duras críticas à força policial do Rio de Janeiro.

Com uma narrativa aguda e controversa, uma visão diferenciada e crítica sobre a guerra às drogas, Via Ápia é um romance forte, profundo e contundente. É também um manifesto à vida é a cultura da paz, que deve ser buscada onde quer que estivermos.


Ficha Técnica

Via Ápia

Geovani Martins

ISBN-13: 9786559211180

ISBN-10: 6559211185

Ano: 2022 

Páginas: 344

Idioma: português

Editora: Companhia das Letras


Perfil do livro no Skoob: https://www.skoob.com.br/via-apia-12222387ed12203488.html

sexta-feira, fevereiro 02, 2024

Busca

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Eterno pó dos astros que observo agora;

Qual meu pequenino peito, o firmamento chora.

Que vista tão suave, tão singela e pura!

É neste bom momento que almejo cura.


Sei que minh’alma é fraca, vil, pobre e escura;

Cercada de temores, repleta de fissuras.

Que por essas brechas penetre, eu espero,

O belo resplendor de um amor sincero


Que limpe finalmente as profundas chagas.

Sem descansar persisto buscando sobre as vagas

Desse mar tão duro e ácido que causa mais feridas

Reflexo doloroso de tantas despedidas.


E não desistirei, espero encontrar.

Em frente seguirei meu triste caminhar

Eterno caminheiro, cantando em seu caminho

O canto de esperança em não andar sozinho.


quarta-feira, janeiro 24, 2024

Lembra-te

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Os ruídos são muitos. Roem as roupas que o tempo veste. São como ratos compondo uma sinfonia. Linguagem desmotivada, absurda. Os ruídos com suas várias patas rabiscam na areia dissonâncias. Sussurros. Caindo. Ascendendo. Obliquamente se deslocando como lágrimas evaporadas. Sangue-fátuo. Luminosidades mórbidas. Um monumento ao absurdo.

Seriam os ruídos sons surdos? Um baque surdo é um ruído que maltrata a mente. O coração bate surdo. É absurdo o esforço que um coração faz ao bater e bater. Ou melhor ba-ter, ba-ter, ba-ter. Prendo a respiração e o peito parece bater mais forte.

Há anos que meu coração esmurra meu peito. Se pudesse, ele gritaria. Bomba de microexplosões, meu coração é um atentado. Oferta ao deus absurdo. Caos milimetricamente executado.

Angústia é ruído. Ruído é música. Melodiosamente a angústia costura em minha pele suas linhas de abandono. Assim eu me abandono também. E me abano. E conto os danos. São tantos.

Ontem morreu alguém. E também hoje. Um rasgo na tessitura da vida. A morte é traça e ruído. Se cada morte é ruído, esse conjunto compõe uma melodia chorosa e revolta. O corpo nem esfriou, o copo nem esvaziou, mas a folha já se rasgou numa delícia obscena. Foi-se. Foice.

Nunca o mundo esteve em silêncio. Os ruídos continuam. As mortes nem mais se contam. Natureza morta. Memento mori


segunda-feira, janeiro 22, 2024

O Lobo da Estepe - As existências e transformações de Harry Haller



Harry Haller é alguém dividido. Em seu interior, homem e fera combatem entre si. Os ideais civilizatórios e burgueses vivem em conflito com a imagem de um lobo, selvagem e feroz. É o Lobo da Estepe, que ao mesmo tempo que orienta a personalidade de Harry, também o assombra e aterroriza. 

Romance escrito por Hermann Hesse, esta é uma obra profunda e enigmática. Conta sobre esse indivíduo inteligente e culto, em crise consigo e com o meio em que vive, a burguesia. Harry sente angústias atrozes, a ponto de querer acabar com a própria vida. 

Por conta dessa agonia e da insistente vontade de se matar, Harry sai à rua para caminhadas longas e angustiadas. Em uma delas, o protagonista se vê diante de um letreiro onde está escrito "O Teatro Mágico" e tem contato com um livreto que misteriosamente fala de sua vida, "Tratado do Lobo da Estepe". É um texto que não apenas traça um perfil dele mesmo, mas também procura desconstruir a dicotomia em que este se encontra. 

Harry costuma falar de si mesmo como o Lobo da Estepe. E ao ler o livreto, ele vê o quanto essa divisão interna é enganosa. O texto defende que dentro de cada homem vivem vários, inúmeros. E essas existências várias vão moldando o ser na sua suposta individualidade.

Além disso, Harry deseja conhecer "O Teatro Mágico". Interessado em adentrar nesse recinto, ele tem seu acesso impedido, uma vez que a entrada é garantida "apenas para raros". Ou seja, apenas indivíduos excepcionais poderiam adentrar o misterioso recinto. Ou seriam loucos? Essa ideia chega a flertar com Harry.

E então sua vida passa por uma reviravolta quando ele conhece Hermínia. Inteligente, perspicaz, bonita e talentosa, ela se torna uma espécie de tutora de Harry e o ensinará a "viver", a partir das aulas de dança que irá ministrar-lhe. Ela o introduzirá na vida dos bailes e festas. Além disso, através de Hermínia, Harry conhecerá Maria, com quem terá um romance ardente e transformador.

Outro indivíduo importante no percurso de Harry será Pablo, um músico de jazz. A princípio, ele surge como uma pessoa superficial e inócua. Contudo, Pablo assumirá em certo momento o papel de mentor de Harry, através da experimentação de drogas psicodélicas e experiências sinestésicas, dentro do enigmático Teatro Mágico.

O Lobo da Estepe é antes de tudo uma obra densa. Um texto repleto de digressões e especulações filosóficas do narrador-protagonista, o livro conta também com um longo prefácio, o qual procura apresentar esse mesmo protagonista como alguém real, que teria sido inquilino da casa em que Hermann Hesse morava. Assim, temos dessa forma um perfil psicológico do narrador-protagonista, numa introdução que busca preparar o leitor para a longa e enigmática de autodescoberta de Harry Haller.

Com um texto profundo, repleto de referências culturais e que busca apresentar camadas filosóficas ao enredo, O Lobo da Estepe é uma obra instigante, incômoda e, sobretudo, transformadora. Um livro para ser visitado pelo leitor de tempos em tempos, com a certeza de que, a cada leitura, um novo ser humano surgirá dessa experiência.


Ficha Técnica

O Lobo da Estepe

Hermann Hesse

ISBN-13: 9788577991075

ISBN-10: 8577991075

Ano: 2009 

Páginas: 252

Idioma: português

Tradutor: Ivo Barroso

Editora: BestBolso


Perfil do livro no Skoob: https://www.skoob.com.br/o-lobo-da-estepe-1338ed406172.html

sexta-feira, janeiro 19, 2024

Morro de poesia




Morro de poesia

a cada dia

que sou assaltado

pela presença 

da tua 

Falta.


Os dias esmaecem

Só desfalecem 

Eu sigo lamentando

rouco murmúrio 

Teu vazio

em mim.


Eu vago sem motivo

Sou fugitivo

do que já foi o amor

Proscrito clandestino 

reflexo contínuo 

da dor.



quarta-feira, janeiro 17, 2024

Todas as histórias que já contei


Faz algum tempo que eu desejava fazer aqui no blog um registro de todas as histórias que já contei. Algumas delas eu esqueci, confesso. Outras, estão tão vívidas como sempre estiveram, de tanto que eu continuo a contá-las.

O exercício de contar histórias, para mim, é também um movimento de guarda e preservação das mesmas. Ao contar histórias, eu as estou "guardando" pois, como diz Antonio Cicero, "Em cofre não se guarda coisa alguma / Em cofre perde-se a coisa à vista". Sendo assim, ao transmitir essas narrativas e também ao registrá-las aqui, eu contribuo para que elas permaneçam.

Esta será uma lista dinâmica. Ela irá crescer à medida que eu for expandindo meu repertório. Além disso, quero produzir versões em escrito das histórias de tradição oral. A partir desses registros, contando com minhas palavras, pretendo fazer o link do título de cada história com a postagem do registro. 

Conto com as contribuições e comentários de todas as pessoas, para que esta postagem esteja cada vez mais rica, e que este tesouro possa enriquecer também seus repertórios e pesquisas.

1. A mulher sábia;

2. O jovem rei;

3. Uma questão de interpretação;

4. O mordomo fiel;

5. O conto do vigário;

6. Os 3 soldados e a princesa nariguda;

7. Anansi e a busca impossível;

8. As penas do dragão;

9. Chapeuzinho Amarelo;

10. Que bicho será que fez a coisa?

11. O caso do bolinho;

12. Um herói bem diferente;

13. Uma visita inesperada;

14. O carvalho;

15. A Fada Feia e a Bruxa Bela;

16. A viúva piedosa e o ateu impiedoso;

17. O filho mudo do fazendeiro;

18. A quase morte de Zé Malandro;

19. Nasrudin e a Morte;

20. O pássaro, o rato e a linguiça;

21. Nasrudin e o viajante;

22. Nasrudin no poste;

23. Nasrudin e o cavalo;

24. O cavalo de madeira;

25. Uma ideia toda azul;

26. A língua (quem te matou, caveira?);

27. Carne de língua; 

28. O homem sem sorte;

29. O nabo gigante (Grimm);

30. A flauta de osso? (Grimm);

31. Os 3 jacarezinhos;

32. O causo do caçador;

33. O causo da garrucha;

34. O causo da dentadura;

35. O Quibungo;

36. Miserinha;

37. O cheiro do pão;

38. O Bichão;

39. O cameleiro de Bagdá;

40. A última folha verde;

41. A Bruxa Salomé;

42. Lucum a la pistache;

43. Os 3 desejos e a linguiça;

44. O único desejo;

45. Lolô;

46. O pássaro da verdade;

47. A história da coca;

48. A procissão das almas;

49. O lobisomem;

50. O peixe luminoso;

51. Raposa;

52. A promessa do girino;

53. As trapalhadas de Zé Bocoió.

segunda-feira, janeiro 15, 2024

Balada de amor ao vento - Uma vida inteira de amor



A linda Sarnau está apaixonada. Seu coração foi capturado pelo belo Mwando. Há, porém, muitas dificuldades esperando esse possível romance. Mwando está estudando para ser padre. O amor dos dois será mais forte que a suposta vocação do rapaz? Este é um dos muitos percalços que Sarnau irá enfrentar para viver este amor.

Balada de amor ao vento, romance de estreia de Paulina Chiziane, é uma narrativa poética e melancólica, repleta de saudade e tristeza. No primeiro capítulo, Sarnau já se aproxima do fim de sua vida e começa a se lembrar dos encontros e desencontros que teve com Mwando. Como narradora, ela vai desfiando essas memórias. O amor se realiza, com Mwando correspondendo aos sentimentos de Sarnau e sendo por isso expulso da escola de padres. Os dois se entregam a esse amor, mas logo Mwando é prometido a outra mulher.

Sarnau pouco tempo tem para sofrer essa desilusão amorosa, pois ela é logo escolhida para ser a primeira esposa do príncipe herdeiro de Mambone. O casamento, porém, não será dos mais perfeitos. Nguila, o herdeiro do trono, além de mulherengo é violento e isso tornará a vida de Sarnau terrível.

A narrativa então se desdobra em duas, contando para nós, leitoras e leitores, a vida tanto de Sarnau quanto de Mwando, de forma intercalada.

A narrativa de Paulina Chiziane é maravilhosamente profunda e repleta de reflexões. As descrições resultam em imagens poéticas lindas, com elementos pitorescos e naturais. Nas digressões que Sarnau faz como narradora, ela denuncia todo o machismo da sociedade em que está incluída, em especial os efeitos funestos da poligamia. O sofrimento da mulher é evidenciado nesse processo.

Mwando também tem sua cota de tristezas. Em seus encontros e desencontros com o amor, ele também sofrerá e não será pouco. Porém, diferentemente de Sarnau, Mwando será o maior responsável por seus próprios sofrimentos. Ele não deixa, porém, de ser também uma vítima do sistema em que vive, sendo assim um homem de contradições.

Com uma prosa poética e de certa forma idílica, além das denúncias que carrega e o enredo repleto de percalços, Balada de amor ao vento é um livro belo e triste. Mas daquelas tristezas que não podemos deixar de evitar. Um livro que, como a vida, é feita de encontros e despedidas.


Ficha Técnica

Balada de amor ao vento

Paulina Chiziane

ISBN-13: 9789722115575

ISBN-10: 972211557X

Ano: 2003 

Páginas: 149

Idioma: português de Portugal 

Editora: Editorial Caminho


Perfil do livro no Skoob: https://www.skoob.com.br/balada-de-amor-ao-vento-67544ed74571.html

sexta-feira, janeiro 12, 2024

Perseguindo a Poesia

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Queria escrever Poesia

mas essa danada

me escapa.

Tento costurar palavras

que possam seduzir 

olhares alheios. 

Sou porém um escritor 

medíocre. 

Tento e tento

mas a Poesia me escapa. 

Frustrado, ponho-me a ler.

E penso: 

por que não posso 

escrever assim?