"Ninguém que põe a mão no arado e olha para trás é apto para o Reino de Deus". Lucas 9:62.
Não é raro as pessoas me perguntarem no que acredito, já que essa é uma prática bem comum em nossa sociedade. A curiosidade delas, no meu caso, costuma vir por conta de testemunharem minha postura ácida em relação à religião, em especial às pessoas e organizações evangélicas, sendo que eu sempre pauto que minhas opiniões provêm de experiência própria. O relato oral é algo poderoso, principalmente se pautado no histórico pessoal. Porém, por vezes sentimos falta do registro escrito, articulado e refletido. Dei-me conta de que, embora meus escritos ficcionais carreguem um pouco desse “desencanto” diante da fé, falta algo mais estruturado e cronológico, algo que possa inclusive ser referência também para mim.
Portanto, decidi produzir este relato pessoal, a partir de memórias antigas, passando por um percurso cronológico até meados dos meus 20 anos, quando me dei conta que não acreditava mais nas igrejas evangélicas. O fim da crença em Deus veio mais tarde, coisa que eu de fato não sei precisar. Acho que foi meio pelo início dos 30, quando escrevi um conto sobre um homem que na infância testemunhara uma visão espiritual terrível, mas da idade adulta descobre que nunca foi alguém capaz de acreditar.
Enfim, melhor tentar começar do início. Acredito que os inícios são sempre muito difíceis, pois eles exigem uma espécie de recorte. Quando de fato algo começa? Afinal, sempre há uma causa mais antiga, profunda, afastada no tempo. Não vou me delongar nisso, porém.
Minha experiência com a igreja evangélica (são várias, eu sei, mas vou colocar tudo no mesmo balaio), começou cedo. Quando me entendi por gente, lembro de brincar de “passa-anel” e “mês” na frente da Igreja Batista Nova Peniel, no Rio de Janeiro.
Eu ganhei uma Bíblia muito cedo. Ouvia de minha mãe que ela e meu pai biológico ficaram na dúvida entre “Samuel” e “Israel”, na hora de escolher meu nome. Decidiram então escrever cada um em um pedaço de papel e tirar o escolhido. Felizmente, saiu “Samuel”. Na minha primeira Bíblia, havia uma estrelinha a caneta assinalando o primeiro livro de Samuel. E a história desse juiz e profeta era repetida quase à exaustão para mim. Também havia as noites em que minha mãe voltava do trabalho e nos forçava a repetir salmos bíblicos. Eu pingando de sono tendo que memorizar versículos que sequer compreendia. Isso ficou gravado em minha mente, de forma que, quase quarenta anos depois, sou capaz de recitar os mesmos trechos.
Naquela época, mergulhei na ilusão de ser pastor. Lembro que visitei algumas vezes o gabinete do Pastor Adriano, para perguntá-lo o que eu deveria fazer para seguir essa carreira. Ele, um homem simpático, meio calvo, de óculos, um pouco acima do peso, dava um sorriso bonachão e me dizia para ter paciência.
Avanço um pouco no tempo. Já em Teófilo Otoni (MG), não sei por que cargas d’água, fui me envolver numa discussão religiosa com meu tio que era formado em filosofia. Eu devia ter lá pelos meus oito ou nove anos. Meu tio usou todos os seus argumentos para convencer uma criança da inexistência de Deus. Falou dos homens das cavernas temendo a noite e fazendo orações para o sol nascer e que isso teria sido a origem das divindades, ligadas aos fenômenos naturais. Disso para a transformação da divindade em uma “pessoa” foi um pulo. Claro, um “pulo” de talvez milhares de anos, mas tudo bem.
Acontece que, ao ser convencido de que Deus havia sido uma criação do medo e do desespero humanos, toda a esperança morreu em mim. Obrigado, tio. Eu caí num choro convulsivo, imerso nesse mesmo desespero que talvez as pessoas da pré-história tiveram quando temiam a noite. Naquela época, minha avó materna, ainda viva, procurou me amparar, conversar comigo, citando versículos bíblicos que “provariam” a existência de Deus, ou ao menos davam lastro à fé que ela tinha.
Outro acontecimento da infância marcou minha vida. Esse era recorrente. Tratava-se da história que minha mãe contava sobre minha conversão. Sim, ela dizia que eu era convertido desde meus cinco anos. Minha mãe tinha a prática de pregar para os filhos ainda bem pequenos, com o objetivo de que eles escolhessem o caminho da fé o mais rápido possível. Conta ela que, certa noite, contou para meu irmão mais velho e para mim sobre a visita que Nicodemos havia feito a Jesus. Nessa visita, Nicodemos ouvia de Jesus que era fundamental “nascer de novo”. Minha mãe estava mais focada no meu irmão, que era um ano e meio mais velho que eu. Segundo ela, eu ainda era muito novo para ter essas compreensões.
Acontece que, quando ela já estava meio desanimada, acreditando que nenhum dos filhos tomaria a iniciativa de se “converter”, de “nascer de novo”, eis que eu me manifesto e digo: “Mamãe, eu quero nascer de novo”. Ela foi ao céu naquele momento. Fez a oração comigo e assim começou minha caminhada como um verdadeiro cristão.
Bem, essa é a história que ela conta, pois eu não tenho a menor lembrança do acontecido. Por isso, quando cheguei à pré-adolescência, comecei a questionar essa narrativa. Não me sentia salvo. Não me sentia uma “nova criatura”. Na época, nós frequentávamos a Primeira Igreja Presbiteriana de Teófilo Otoni. Em vários cultos, eu passei ajoelhado em um dos bancos, fazendo orações desesperadas, seguindo a fórmula da oração que pedia para Jesus entrar no meu coração e perdoar os meus pecados. Ainda assim, nada acontecia dentro de mim. Eu me sentia morto por dentro.
Nessa época, também ocorreu um incidente que acredito ter reforçado meu desespero. Estava na antiga quinta série (hoje sexto ano) e tínhamos aula de religião. A professora coincidentemente era da mesma igreja que eu frequentava. Certo dia, quando foi explicar sobre a existência da Trindade, o Wagner, um moleque mais velho e muito bagunceiro, começou a fazer vários deboches, brincadeiras e piadas sobre o Espírito Santo. Na hora, não me contive. Caí na risada, como a maioria dos meus colegas.
Eu, porém, conhecida a “Palavra de Deus”. Sabia que Jesus havia dito que o pecado de blasfêmia contra o Espírito Santo era imperdoável. E eu havia achado graça. Sentia-me um cúmplice. Quando caí em mim, fui inundado pela culpa e também pelo terror da possibilidade da condenação eterna. Passei noites e mais noites aos prantos, pedindo perdão, sem contudo me sentir perdoado.
Comecei a pensar que minha chance de redenção seria a confirmação pública da minha “fé”. Coloco em aspas porque talvez eu nunca tivesse de fato acreditado, ou meu eu que cria tenha morrido lá nos meus oito ou nove anos. A Bíblia fala de uma declaração de boca, pública, de que a pessoa acredita. Na Igreja Presbiteriana existe a classe de Catecúmenos, que prepara os interessados para a Profissão de Fé. A partir dessa cerimônia, eu seria recebido no seio da igreja como um de seus membros.
Esses planos foram frustrados quando nos mudamos para Belo Horizonte (MG). Mudamos não só de cidade, mas também de igreja. Passamos a frequentar a Igreja Batista da Esperança, no bairro Lagoa, em BH. Posteriormente, ela se tornou Igreja Batista Nacional da Esperança, com o objetivo de marcar a denominação à qual pertencia. Nessa igreja, eu ingressei no curso de batismo. Já havia sido batizado na Presbiteriana, mas os batistas não validam o batismo de aspersão, que é aquele que a gente recebe uns borrifos de água na cabeça. Batismo de verdade tem que ser por imersão, quando mergulham a gente na água. E ainda tem aquelas denominações que só validam batismos de imersão em água corrente, ou seja, rios.
Concluí o curso, “passei pelas águas”, cumpri todo o ritual exigido. Por um tempo, senti que estava integrado, que fazia parte da comunidade cristã-evangélica. Nessa época, começaram as visões, mas isso é assunto para outro relato. O fato é que eu fui passando pela adolescência como um “pastorzinho”, um futuro pastor, tanto que dizia a todas as pessoas que faria o Seminário Teológico Evangélico do Brasil (STEB), de orientação Batista. Participava dos ensaios e apresentações do grupo Levitas, saía aos domingos para uma missão infantil onde contava histórias bíblicas para crianças, andava pelos bairros Lagoa, Hawai, Justinópolis, Céu Azul, Lagoinha, Piratininga, distribuindo folhetos com evangelizações. Por vezes, entregar um folheto não era suficiente. Eu tinha que ter certeza de que a pessoa tinha ouvido sobre o amor de Jesus. Então, dizia, ao entregar o papel: “Jesus te ama”. Só que isso também não me parecia o suficiente. Por isso, também importunava a pessoa com uma rápida pregação e um convite para o culto de domingo à noite. Preguei nos cultos de jovens, quartas à noite e também aos sábados. Comparecia às madrugadas de oração, às vigílias, aos intercâmbios com outras igrejas. Subia os “monte” no bairro Palmares, para orar nas madrugadas de sexta para sábado. Importunava quem estava sentado ao meu lado no ônibus com pregações sobre o amor de Jesus.
Não era santo, diga-se de passagem. Tinha os meus tropeços. Creio que todo adolescente religioso tem. A curiosidade sobre o sexo, a vontade de ter namorada, as fantasias. Só que tudo isso me enchia de uma culpa avassaladora. Eu tinha a Bíblia para fomentar minha culpa. E também uma máscara de “santo”. Não ficava com as meninas, sequer deixava que elas percebessem que eu tinha qualquer desejo por elas. Reprimia com muita força qualquer pensamento de atração ou qualquer fantasia. Isso acabava se refletindo nos sonhos, o que me deixava ainda mais culpado.
Havia vários livros para adolescentes cristãos. Textos que alertavam para os perigos do sexo e de tudo o que havia ligado ao corpo. Pastores citavam trechos bíblicos sobre o pouco ou nenhum proveito para o exercício físico. A dimensão corporal era vista como algo perigoso. Eu li cartas que pastores trocavam com adolescentes e depois publicavam como livros. Nessas cartas, esses pastores apontavam os inúmeros perigos da adolescência.
Passei por esses conflitos e ainda por cima comecei a me incomodar com a forma com que as pessoas na igreja se portavam. Não conseguia entender a realidade de que elas eram apenas humanas, com tantas falhas quanto eu. Porém, o discurso da “nova criatura”, do “novo homem”, fazia com que eu entrasse em parafuso. A pessoa se dizia salva, declarava que havia “nascido de novo”, mas seus mesmos vícios e desvios de caráter estavam lá. Claro que suavizados e disfarçados pela máscara religiosa, mas era possível observar esses comportamentos nitidamente.
Havia também quem “piorava” depois que passava a ser evangélico. Uma pessoa que acabava por ser influenciada e contaminada pelas intrigas e fofocas. A amargura de quem não podia viver “livremente”, apesar de se declarar realmente “livre”. O embate entre igreja e “mundo”. Sim, no discurso cristão, o mundo é o inimigo. Está lá, na Bíblia, não foi inventado pelos “crentes”.
Por fim, há também o autoritarismo de alguns pastores. A postura de que são donos da razão, alguns chegam a se declarar “ungidos do Senhor”. Diziam que “a rebeldia é pior que o pecado de feitiçaria”. Os recursos que usam para o controle e a manipulação do rebanho são vários. Quero destacar que não estou dizendo que todos os pastores são assim. Há pessoas boas dentre eles, há também as contradições de cada ser humano. Porém, é possível perceber certa maldade, certo vício pelo poder, em alguns pastores evangélicos, assim como em outros líderes religiosos.
Com esses comportamentos, o desencanto foi se instalando em mim. Há também um ponto fundamental ligado à crença: Eu ficava horrorizado com o discurso da condenação ao Inferno. Para mim, era inconcebível um ser todo-poderoso que cria alguém, diz que ama esse alguém, mas depois condena esse mesmo alguém para o sofrimento eterno. Por pior que essa pessoa seja, não consigo acreditar que mereça sofrer eternamente. Existem mães e pais melhores que Deus nesse quesito, pois continuam a amar suas filhas e seus filhos, não importa o que façam. Já o Deus cristão é condicional. “Eu te amo, até mandei meu filho para morrer por você, mas se você não admitir isso e não viver como eu quero, vai sofrer para sempre.” Para mim, isso é doentio. E esse sentimento que tenho já estava se insinuando em meu coração desde minha adolescência.
Não digo que não tive bons momentos “espirituais”. Por exemplo, certa tarde, cheguei em casa com um aperto terrível no peito. Uma angústia sem tamanho. Tinha treze anos. Fui buscar consolo na Bíblia e encontrei a passagem do livro de João em que Jesus promete preparar um lugar na casa de seu pai para seus discípulos. Ele diz para que seus corações não se perturbem. Eu tomei aquelas palavras para mim. Chorei abundantemente. Foi um momento de conexão, confesso. Só que esse momento não apaga uma vida inteira mergulhado em contradições e perversidade.
Finalmente, cheguei à idade adulta. Esse foi o ponto final na minha relação com a igreja evangélica. Conheci muito de perto algumas estruturas, organizações e comportamentos. Vi pessoas queridas serem feridas por atitudes abusivas de pastores e líderes evangélicos. Testemunhei igrejas inteiras assediando jovens moças que não haviam “se guardado” para o casamento.
Lembro-me claramente da última vez que fui a um culto como evangélico. Era um domingo à noite. Eu havia ligado para o pastor, pedindo autorização para não comparecer ao culto. Decidi ser sincero: disse que estava cansado e que havia um livro que eu queria terminar de ler. O pastor reagiu com um nervosismo controlado. Disse que eu não deveria ficar lendo livros ao invés de ir à igreja, que isso iria esfriar a minha fé. Desliguei o telefone resignado e decidido em ir ao culto.
Naquela noite, após o louvor, o pastor foi à frente para fazer o seu sermão. Abriu a Bíblia e leu Atos 2:42. Um versículo sobre perseverar na doutrina dos apóstolos. Após a leitura, voltou-se para o público e começou a falar sobre a importância de não deixar de ir aos cultos. Disse: “Por exemplo, você pode querer deixar de ir ao culto para ler um livro. Se fizer isso, vai esfriar na fé.” Quando ouvi essas palavras, xinguei-o mentalmente. Fiquei tão irritado que naquele momento decidi que nunca mais voltaria àquela igreja.
Passei a dizer que estava procurando outra igreja para frequentar, mas no fundo eu estava cansado disso tudo. Cansado de pessoas dizendo como eu deveria me comportar, como deveria pensar. Estava cansado da hipocrisia, do discurso enviesado, do ódio disfarçado de amor. Os comportamentos de pastores fofoqueiros, manipuladores, que pregavam lindamente mas se comportavam sem ética profissional, líderes de jovens que debochavam dos próprios liderados logo que o culto acabava. Tudo isso envenenou para sempre qualquer visão que eu tinha do cristianismo.
Olhando para trás, penso que talvez eu nunca tenha acreditado. Ou talvez minha fé tenha morrido naquela tarde em Teófilo Otoni, diante de um adulto cruel que talvez acreditasse que estava fazendo um “bem” ao abrir logo cedo os olhos de uma criança. Hoje penso que a fé não é uma escolha, mas um conjunto de fatores. Ser convencido de algo por vezes parece externo. Perceber algo que fica óbvio para nós. Eu não escolhi não crer em Deus. Para mim, pareceu natural.
Aproveito para acrescentar que eu não me considero ateu. Não sou corajoso a esse ponto. Admito a possibilidade da transcendência, do mistério. Afinal, a vida me soa meio absurda e arbitrária. Eu existo porque sim. Isso assusta um pouco. Essa falta de um propósito real na nossa existência. E também nosso fim inevitável.
Por enquanto, busco na escrita e na leitura um certo estofo para me preparar para a vida e para a morte. Sigo como se a literatura fosse minha religião, embora eu não acredite que os livros possam salvar alguém. Ninguém está no mundo para ser salvo. Se estamos no mundo, talvez seja para amar.
Na Bíblia há uma passagem sobre não olhar para trás após escolher o caminho da fé. Em outro trecho, Paulo afirma que “as coisas velhas já passaram” e que “tudo se fez novo”. Esse discurso de negar o passado, apenas olhar para frente me incomoda grandemente. Somos sujeitos históricos. Precisamos aprender sobre o passado. Sei que ele não deve ser determinante, que devemos tomar decisões e nos renovar, que precisamos abrir a mente para novas ideias. Mas apagar tudo o que aconteceu é no mínimo desastroso. “Somos porque lembramos”. Por isso, como a Sankofa, sigo olhando para trás.
Pessoal, eu havia escrito "Primeira Igreja Presbiteriana de Belo Horizonte", mas é "Primeira Igreja Presbiteriana de Teófilo Otoni". Peço desculpas pelo equívoco...
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