domingo, abril 27, 2025

Coisas que uma criança pode "aprender" na Bíblia

 A leitura bíblica deveria vir com aviso de gatilho


Atenção! Aviso de gatilho: este texto é tóxico. Nele há referências a assassinato, estupro e genocídio. 


Recentemente, soube que a Câmara Municipal de Belo Horizonte aprovou um Projeto de Lei que autoriza o uso da Bíblia “Sagrada” como recurso paradidático em salas de aula. O argumento é que o livro seria fonte de informações históricas sobre “civilizações antigas, como Israel e Babilônia”. Outra fala, essa mais tendenciosa, afirma que o contato com a Bíblia transmite “valores cristãos” e que propicia “cura”.

A partir dessa notícia disparatada, fiquei imaginando o que uma criança encontrará no texto bíblico. Será que professoras e professores recomendarão cautela à criança enquanto ela navega pelas páginas das “divinas escrituras”? Ou deixarão que ela acesse livremente os registros “históricos” milenares?

Penso na quantidade de informações “curiosas” que a Bíblia pode fornecer para o pequeno leitor. Primeiramente, existe uma larga e massiva propaganda para que as pessoas se acheguem ao texto bíblico sem qualquer cautela ou mediação. Ah, a “palavra de Deus” fornece “cura”, “alimento” para a alma. Essas são as afirmações dos entusiastas religiosos.

Claro, existe um monte de preceitos, ordens, regras sobre conduta na Bíblia, algumas até bastante ultrapassadas e inclusive completamente ignoradas. Por exemplo, temos o livro de Levítico para chamar mulheres em período menstrual de “imundas”, ou a proibição, atualmente ignorada pela maioria dos cristãos, do consumo da carne de porco. Seria possível listar uma série de mandamentos que, se desobedecidos, teriam como pena o apedrejamento ou o fogo. Quem duvida pode dar uma conferida no livro de Levítico. 

Através da Bíblia, a criança pode aprender sobre a antiga arte de exterminar um povo, ou seja, o genocídio puro e simples. Em Números 31, os israelitas cometem genocídio contra os midianitas pela primeira vez, a mando de Deus. Isso porque eles tinham crenças e práticas diferentes quanto ao sexo e isso foi considerado uma “tentativa” de destruir o “povo escolhido”. Essa primeira grande atrocidade comandada por Deus foi perversa e doentia, inclusive com a orientação de Moisés. Quando os soldados israelitas voltaram do massacre trazendo mulheres e crianças como prisioneiras, o profeta bíblico ficou irado. Mandou que fossem executados todos os meninos e todas as mulheres que não fossem virgens. As sobreviventes foram dadas para os soldados. Esse é o nível de amor e bondade que uma criança pode ver na Bíblia. E não venham dizer que os tempos eram outros, que esses acontecimentos têm um valor simbólico ou qualquer argumento barato. Atrocidade não se justifica e ponto.

Acontece que esse não foi o único exemplo dos horrores cometidos por ordem divina. Em Josué, vários povos são massacrados: os heteus, os girgaseus, os amorreus, os cananeus, os perizeus, os heveus e os jebuseus. Isso porque eles habitavam a “terra prometida”, ou seja, eram inimigos simplesmente porque existiam. Alguém lembra de algum cenário atual?

Essa prática do genocídio não cessa depois que os israelitas se estabelecem na “terra prometida”. Em Juízes, eles cometem genocídio contra uma de suas tribos, Benjamin, quase eliminando-a completamente. Depois, lançam mão do esturpo em massa para “salvar” a tribo que estava em vias de extinção. Esse episódio é hediondo do início ao fim, narrado num grau de frieza e naturalidade assustadoras. Outro grande genocídio é praticado ainda no início de I Samuel, contra os amalequitas. Isso por uma rixa antiga de Deus contra esse povo. É, pelo visto o Divino não é mesmo capaz de perdoar. 

Claro, e como seria? Se Deus, que teria criado todo o Universo, as Leis da Física e tudo o mais, foi capaz de criar uma regra de que só com sangue um pecado pode ser perdoado, não dá para esperar coisa boa dele.

É possível também conhecer na Bíblia o perigo do “coito interrompido”. Em Gênesis 38, Onã é morto por Deus porque não ejaculava dentro de sua esposa. Sim, o Todo-Poderoso decidiu assassinar um simples homem porque ele não queria engravidar a viúva do seu irmão, com quem havia se casado por ordem de Deus, pois assim o filho contaria como descendente do falecido. Já podemos logo de início perceber que Deus não deixa barato. Se uma atitude como essa pode provocar sua morte, é bom andar “pianinho” com esse ser onipotente. Temor, meus caros, temor! E tremor, aliás.

A Bíblia dá umas lições muito confusas para as pessoas. Por exemplo, mentir é pecado. Porém, os patriarcas bíblicos (Abraão e Isaque) mentiram quando estavam no Egito, informando aos Faraós de suas épocas que suas esposas eram suas irmãs. E Deus foi lá fazer o quê? Punir os Faraós, é claro. Afinal, eles estavam com as mulheres de seus “próximos”. A confusão foi desfeita, felizmente, sem ninguém ter morrido. Mas fica a dica. Se você é escolhido por Deus, pode mentir, enganar, manipular e ludibriar à vontade.

O maior exemplo disso é Jacó, que depois se chamou Israel. O cara deu o golpe no irmão, Esaú, para assim receber a bênção do pai. “Comprou” do irmão o direito da primogenitura. Como se isso fosse possível. Ah, mas a gente se esquece que “tudo é possível” se você é “escolhido” por Deus. Depois, Jacó foi lá e “cobrou” a dívida. Como? Aproveitando-se da cegueira tardia do pai para receber a bênção no lugar do primogênito. Não teve o menor pudor em manipular o próprio pai que, segundo a mesma “escritura sagrada”, deveria ser honrado pelo filho.

Mais tarde, o pimpão se casa com duas mulheres. Detalhe: irmãs. Não satisfeito, ele se aproveita da rivalidade das duas para fazer sexo também com suas damas de companhia, ou melhor, servas. Fique registrado que este último termo foi um eufemismo para mulheres escravizadas. Uma das coisas perversas nisso tudo é que ninguém se lembra das servas. Seus sentimentos, desejos, temores, nada disso foi registrado. Por isso, ninguém se lembra delas.

As contradições não param por aí. Um dos maiores nomes da Bíblia é justamente o de Davi, chamado de “homem segundo o coração de Deus”. Pois esse cara não fez nada mais que matar e tomar mulheres à força. Se Davi queria uma mulher, ele ia lá e pegava. Ah, claro, as palavras são suavizadas, mas Abigail teve mesmo uma escolha? Como dizer não ao um senhor da guerra que chega com um exército à sua porta logo após a morte do seu marido? O mesmo senhor da guerra que ameaçou se vingar do seu marido quando este ainda era vivo? Além disso, as 10 concubinas do rei tiveram alguma chance de dizer não? E Bate-Seba, esposa de Urias, oficial de Davi?

A história de Urias é uma das mais lamentáveis. Integrante do exército israelita, esse estrangeiro (um heteu) era mais fiel a seu rei e a seus companheiros do que à própria esposa. Isso eu digo: infelizmente. Pois a recíproca não foi verdadeira, no caso de Davi. Enquanto seu exército estava em guerra, o monarca passava o tempo contemplando a paisagem do alto do seu palácio. Viu uma mulher tomando banho e a desejou. Saber que se tratava de Bate-Seba, esposa de Urias, não o deteve. 

Quando a notícia da gravidez de Bate-Seba chegou até Davi, ele arquitetou um plano para “resolver” o imbróglio. Convocou o oficial, que estava no campo de batalha. Logo que Urias chegou, Davi ordenou que servissem vinho ao homem. Na cabeça do rei, Urias voltaria para casa, bêbado, e dormiria com a mulher. A infidelidade seria encoberta, pois o militar pensaria que a gravidez teria sido concebida em sua noite de folga.

Porém, Urias não voltou para casa. Na manhã seguinte, Davi ficou sabendo que o homem havia dormido no portão do palácio. Ao ser inquirido, Urias alegou que não tinha direito de dormir no conforto de sua casa, enquanto seus companheiros enfrentavam as dificuldades do acampamento de guerra, dormindo ao relento. 

Assim, Davi toma uma decisão drástica e que, para mim, é o ápice da perversidade. Escreveu uma carta endereçada a Joabe, comandante do exército. Na carta, Davi dava ordens específicas para que Urias fosse abandonado durante a batalha, de modo que morresse de qualquer jeito. E agora vem o ponto mais perverso e maligno de tudo: o portador da carta foi o próprio Urias! Sim, ele levou sua própria sentença de morte, sem saber de nada!

Os mais religiosos vão alegar que o pecado de Davi (para mim isso foi é crime hediondo com motivo torpe) não ficou impune, que Deus o puniu. Como? MATANDO A CRIANÇA gerada no adultério. E não foi uma morte súbita. O bebê AGONIZOU. Como Deus é bom!

Há um outro discurso sobre a punição divina. Alguns dizem que o que aconteceu com a família de Davi depois teria sido em parte consequência desse adultério. Claro que tem mais uma contribuição do próprio Davi nessa história. E o que afinal aconteceu? Bem, digamos que os filhos de Davi em geral não foram muito bons uns para com os outros. Para começar, Amnon cometeu estupro contra Tamar, que era sua irmã por parte de pai. Absalão, irmão de Tamar por parte de mãe e pai, exigiu de Davi uma punição contra Amnon, o que não aconteceu. Amargurado, Absalão decide fazer “justiça” com as próprias mãos, tramando e executando o assassinato de Amnon. Não satisfeito, ele dá um golpe de estado e depõe o pai, assumindo o trono de Israel.

Aqui, faço uma breve interposição. A cena que descreve a desolação de Tamar depois de seu estupro é de cortar o coração. E isso não comoveu seu próprio pai, o tal homem segundo o coração de Deus. Absalão não ficou satisfeito em exilar o pai e assumir seu lugar no governo. Ele precisava puni-lo “adequadamente”. Nada melhor do que humilhá-lo publicamente. Só que essa “humilhação”, mais uma vez, foi voltada a quem não tinha nenhuma culpa. Sim, Absalão decide estuprar publicamente as 10 concubinas de Davi que haviam sido deixadas para trás na fuga de Jerusalém. Depois que Absalão foi morto e o seu pai reintegrado ao trono, essas mulheres, que foram vítimas, receberam um tratamento terrível, sendo confinadas, como se estivessem irremediavelmente contaminadas. Ou seja, foram condenadas ao enclausuramento.

Nem depois da morte de Davi a violência entre seus filhos acabou. Quando Salomão subiu ao trono, um dos seus irmãos, Adonias, aproximou-se de Bate-Seba e pediu em casamento a mão da moça que foi cuidadora de Davi antes de sua morte. Isso teria sido visto por Salomão como uma tentativa de golpe. Enfurecido, o novo rei mandou seu irmão mais velho ser executado. Isso que é amor fraterno! A família de Davi nos ensina tantos valores familiares!

Alguém pode alegar que essas narrativas são de outra época, um período anterior à Graça, que teria sido instituída a partir da morte de Jesus na cruz. Então, eu evoco o discurso do próprio Cristo. Se alguém se lembrar do episódio em que o apóstolo Pedro decepa com uma espada a orelha de Malco, servo do sumo sacerdote, vale lembrar que foi Jesus que mandou comprar a espada que Pedro usava. Tudo bem que ele usou o acontecido para apregoar seu discurso pacifista, pois “quem matar com a espada com a espada morrerá”. Mas ninguém teria sido ferido se ele não tivesse mandado comprarem espadas, para início de conversa!

E para exemplificar como a Graça não é para todos, podemos dar um pulo no livro de Atos, bem no começo, com o ocorrido com Ananias e Safira. Os dois morreram porque, segundo Pedro, mentiram para o Espírito Santo. Isso porque não queriam dar todo o seu dinheiro para a incipiente Igreja. Até mesmo o Consolador é implacável. A propósito, falar mal do Espírito Santo é imperdoável, fica a dica!

Através desse percurso bíblico, podemos perceber como Deus de fato faz acepção de pessoas! Sim, Javé, Jeová ou Yaweh, em qualquer uma das Três Pessoas que o constituem, não perdoa, não se compadece e não releva. Sua lógica de crime e castigo é tão rígida, tão estrita e mesquinha, que ele não poupa uma das suas três manifestações (o Filho) porque decidiu não ser capaz de perdoar. Quem diz que a Bíblia ensina a perdoar ou está enganado, ou engana. Não, a “Palavra de Deus” determina que toda dívida deve ser paga, sem perdão. Ah, e tem dívida impagável. Então, é melhor ficar de olho, pessoal!

É por essas e algumas outras que imagino como o uso da Bíblia como recurso paradidático pode mandar mensagens no mínimo confusas para as crianças e adolescentes. Inserir nas escolas esse livro tendencioso e regado a sangue pode ser profundamente danoso, um perigo real para estudantes em formação. Para evitarmos qualquer equívoco e prejuízo para o desenvolvimento cognitivo desses pequenos estudantes, ou melhor, de todas as pessoas que quiserem ler as “escrituras”, que tal as sociedades bíblicas e instituições cristãs passarem a incluir avisos de gatilho na capa de suas novas edições da Bíblia “Sagrada”? Poderiam evitar muita dor de cabeça. Como a que eu estou sentindo, ao terminar de escrever este texto.

segunda-feira, março 31, 2025

Olhando para trás - ou como deixei de ser cristão evangélico


"Ninguém que põe a mão no arado e olha para trás é apto para o Reino de Deus". Lucas 9:62.


Não é raro as pessoas me perguntarem no que acredito, já que essa é uma prática bem comum em nossa sociedade. A curiosidade delas, no meu caso, costuma vir por conta de testemunharem minha postura ácida em relação à religião, em especial às pessoas e organizações evangélicas, sendo que eu sempre pauto que minhas opiniões provêm de experiência própria. O relato oral é algo poderoso, principalmente se pautado no histórico pessoal. Porém, por vezes sentimos falta do registro escrito, articulado e refletido. Dei-me conta de que, embora meus escritos ficcionais carreguem um pouco desse “desencanto” diante da fé, falta algo mais estruturado e cronológico, algo que possa inclusive ser referência também para mim.

Portanto, decidi produzir este relato pessoal, a partir de memórias antigas, passando por um percurso cronológico até meados dos meus 20 anos, quando me dei conta que não acreditava mais nas igrejas evangélicas. O fim da crença em Deus veio mais tarde, coisa que eu de fato não sei precisar. Acho que foi meio pelo início dos 30, quando escrevi um conto sobre um homem que na infância testemunhara uma visão espiritual terrível, mas da idade adulta descobre que nunca foi alguém capaz de acreditar.

Enfim, melhor tentar começar do início. Acredito que os inícios são sempre muito difíceis, pois eles exigem uma espécie de recorte. Quando de fato algo começa? Afinal, sempre há uma causa mais antiga, profunda, afastada no tempo. Não vou me delongar nisso, porém. 

Minha experiência com a igreja evangélica (são várias, eu sei, mas vou colocar tudo no mesmo balaio), começou cedo. Quando me entendi por gente, lembro de brincar de “passa-anel” e “mês” na frente da Igreja Batista Nova Peniel, no Rio de Janeiro. 

Eu ganhei uma Bíblia muito cedo. Ouvia de minha mãe que ela e meu pai biológico ficaram na dúvida entre “Samuel” e “Israel”, na hora de escolher meu nome. Decidiram então escrever cada um em um pedaço de papel e tirar o escolhido. Felizmente, saiu “Samuel”. Na minha primeira Bíblia, havia uma estrelinha a caneta assinalando o primeiro livro de Samuel. E a história desse juiz e profeta era repetida quase à exaustão para mim. Também havia as noites em que minha mãe voltava do trabalho e nos forçava a repetir salmos bíblicos. Eu pingando de sono tendo que memorizar versículos que sequer compreendia. Isso ficou gravado em minha mente, de forma que, quase quarenta anos depois, sou capaz de recitar os mesmos trechos.

Naquela época, mergulhei na ilusão de ser pastor. Lembro que visitei algumas vezes o gabinete do Pastor Adriano, para perguntá-lo o que eu deveria fazer para seguir essa carreira. Ele, um homem simpático, meio calvo, de óculos, um pouco acima do peso, dava um sorriso bonachão e me dizia para ter paciência.

Avanço um pouco no tempo. Já em Teófilo Otoni (MG), não sei por que cargas d’água, fui me envolver numa discussão religiosa com meu tio que era formado em filosofia. Eu devia ter lá pelos meus oito ou nove anos. Meu tio usou todos os seus argumentos para convencer uma criança da inexistência de Deus. Falou dos homens das cavernas temendo a noite e fazendo orações para o sol nascer e que isso teria sido a origem das divindades, ligadas aos fenômenos naturais. Disso para a transformação da divindade em uma “pessoa” foi um pulo. Claro, um “pulo” de talvez milhares de anos, mas tudo bem. 

Acontece que, ao ser convencido de que Deus havia sido uma criação do medo e do desespero humanos, toda a esperança morreu em mim. Obrigado, tio. Eu caí num choro convulsivo, imerso nesse mesmo desespero que talvez as pessoas da pré-história tiveram quando temiam a noite. Naquela época, minha avó materna, ainda viva, procurou me amparar, conversar comigo, citando versículos bíblicos que “provariam” a existência de Deus, ou ao menos davam lastro à fé que ela tinha.

Outro acontecimento da infância marcou minha vida. Esse era recorrente. Tratava-se da história que minha mãe contava sobre minha conversão. Sim, ela dizia que eu era convertido desde meus cinco anos. Minha mãe tinha a prática de pregar para os filhos ainda bem pequenos, com o objetivo de que eles escolhessem o caminho da fé o mais rápido possível. Conta ela que, certa noite, contou para meu irmão mais velho e para mim sobre a visita que Nicodemos havia feito a Jesus. Nessa visita, Nicodemos ouvia de Jesus que era fundamental “nascer de novo”. Minha mãe estava mais focada no meu irmão, que era um ano e meio mais velho que eu. Segundo ela, eu ainda era muito novo para ter essas compreensões.

Acontece que, quando ela já estava meio desanimada, acreditando que nenhum dos filhos tomaria a iniciativa de se “converter”, de “nascer de novo”, eis que eu me manifesto e digo: “Mamãe, eu quero nascer de novo”. Ela foi ao céu naquele momento. Fez a oração comigo e assim começou minha caminhada como um verdadeiro cristão.

Bem, essa é a história que ela conta, pois eu não tenho a menor lembrança do acontecido. Por isso, quando cheguei à pré-adolescência, comecei a questionar essa narrativa. Não me sentia salvo. Não me sentia uma “nova criatura”. Na época, nós frequentávamos a Primeira Igreja Presbiteriana de Teófilo Otoni. Em vários cultos, eu passei ajoelhado em um dos bancos, fazendo orações desesperadas, seguindo a fórmula da oração que pedia para Jesus entrar no meu coração e perdoar os meus pecados. Ainda assim, nada acontecia dentro de mim. Eu me sentia morto por dentro. 

Nessa época, também ocorreu um incidente que acredito ter reforçado meu desespero. Estava na antiga quinta série (hoje sexto ano) e tínhamos aula de religião. A professora coincidentemente era da mesma igreja que eu frequentava. Certo dia, quando foi explicar sobre a existência da Trindade, o Wagner, um moleque mais velho e muito bagunceiro, começou a fazer vários deboches, brincadeiras e piadas sobre o Espírito Santo. Na hora, não me contive. Caí na risada, como a maioria dos meus colegas.

Eu, porém, conhecida a “Palavra de Deus”. Sabia que Jesus havia dito que o pecado de blasfêmia contra o Espírito Santo era imperdoável. E eu havia achado graça. Sentia-me um cúmplice. Quando caí em mim, fui inundado pela culpa e também pelo terror da possibilidade da condenação eterna. Passei noites e mais noites aos prantos, pedindo perdão, sem contudo me sentir perdoado.

Comecei a pensar que minha chance de redenção seria a confirmação pública da minha “fé”. Coloco em aspas porque talvez eu nunca tivesse de fato acreditado, ou meu eu que cria tenha morrido lá nos meus oito ou nove anos. A Bíblia fala de uma declaração de boca, pública, de que a pessoa acredita. Na Igreja Presbiteriana existe a classe de Catecúmenos, que prepara os interessados para a Profissão de Fé. A partir dessa cerimônia, eu seria recebido no seio da igreja como um de seus membros.

Esses planos foram frustrados quando nos mudamos para Belo Horizonte (MG). Mudamos não só de cidade, mas também de igreja. Passamos a frequentar a Igreja Batista da Esperança, no bairro Lagoa, em BH. Posteriormente, ela se tornou Igreja Batista Nacional da Esperança, com o objetivo de marcar a denominação à qual pertencia. Nessa igreja, eu ingressei no curso de batismo. Já havia sido batizado na Presbiteriana, mas os batistas não validam o batismo de aspersão, que é aquele que a gente recebe uns borrifos de água na cabeça. Batismo de verdade tem que ser por imersão, quando mergulham a gente na água. E ainda tem aquelas denominações que só validam batismos de imersão em água corrente, ou seja, rios. 

Concluí o curso, “passei pelas águas”, cumpri todo o ritual exigido. Por um tempo, senti que estava integrado, que fazia parte da comunidade cristã-evangélica. Nessa época, começaram as visões, mas isso é assunto para outro relato. O fato é que eu fui passando pela adolescência como um “pastorzinho”, um futuro pastor, tanto que dizia a todas as pessoas que faria o Seminário Teológico Evangélico do Brasil (STEB), de orientação Batista. Participava dos ensaios e apresentações do grupo Levitas, saía aos domingos para uma missão infantil onde contava histórias bíblicas para crianças, andava pelos bairros Lagoa, Hawai, Justinópolis, Céu Azul, Lagoinha, Piratininga, distribuindo folhetos com evangelizações. Por vezes, entregar um folheto não era suficiente. Eu tinha que ter certeza de que a pessoa tinha ouvido sobre o amor de Jesus. Então, dizia, ao entregar o papel: “Jesus te ama”. Só que isso também não me parecia o suficiente. Por isso, também importunava a pessoa com uma rápida pregação e um convite para o culto de domingo à noite. Preguei nos cultos de jovens, quartas à noite e também aos sábados. Comparecia às madrugadas de oração, às vigílias, aos intercâmbios com outras igrejas. Subia os “monte” no bairro Palmares, para orar nas madrugadas de sexta para sábado. Importunava quem estava sentado ao meu lado no ônibus com pregações sobre o amor de Jesus.

Não era santo, diga-se de passagem. Tinha os meus tropeços. Creio que todo adolescente religioso tem. A curiosidade sobre o sexo, a vontade de ter namorada, as fantasias. Só que tudo isso me enchia de uma culpa avassaladora. Eu tinha a Bíblia para fomentar minha culpa. E também uma máscara de “santo”. Não ficava com as meninas, sequer deixava que elas percebessem que eu tinha qualquer desejo por elas. Reprimia com muita força qualquer pensamento de atração ou qualquer fantasia. Isso acabava se refletindo nos sonhos, o que me deixava ainda mais culpado. 

Havia vários livros para adolescentes cristãos. Textos que alertavam para os perigos do sexo e de tudo o que havia ligado ao corpo. Pastores citavam trechos bíblicos sobre o pouco ou nenhum proveito para o exercício físico. A dimensão corporal era vista como algo perigoso. Eu li cartas que pastores trocavam com adolescentes e depois publicavam como livros. Nessas cartas, esses pastores apontavam os inúmeros perigos da adolescência.

Passei por esses conflitos e ainda por cima comecei a me incomodar com a forma com que as pessoas na igreja se portavam. Não conseguia entender a realidade de que elas eram apenas humanas, com tantas falhas quanto eu. Porém, o discurso da “nova criatura”, do “novo homem”, fazia com que eu entrasse em parafuso. A pessoa se dizia salva, declarava que havia “nascido de novo”, mas seus mesmos vícios e desvios de caráter estavam lá. Claro que suavizados e disfarçados pela máscara religiosa, mas era possível observar esses comportamentos nitidamente. 

Havia também quem “piorava” depois que passava a ser evangélico. Uma pessoa que acabava por ser influenciada e contaminada pelas intrigas e fofocas. A amargura de quem não podia viver “livremente”, apesar de se declarar realmente “livre”. O embate entre igreja e “mundo”. Sim, no discurso cristão, o mundo é o inimigo. Está lá, na Bíblia, não foi inventado pelos “crentes”.

Por fim, há também o autoritarismo de alguns pastores. A postura de que são donos da razão, alguns chegam a se declarar “ungidos do Senhor”. Diziam que “a rebeldia é pior que o pecado de feitiçaria”. Os recursos que usam para o controle e a manipulação do rebanho são vários. Quero destacar que não estou dizendo que todos os pastores são assim. Há pessoas boas dentre eles, há também as contradições de cada ser humano. Porém, é possível perceber certa maldade, certo vício pelo poder, em alguns pastores evangélicos, assim como em outros líderes religiosos.

Com esses comportamentos, o desencanto foi se instalando em mim. Há também um ponto fundamental ligado à crença: Eu ficava horrorizado com o discurso da condenação ao Inferno. Para mim, era inconcebível um ser todo-poderoso que cria alguém, diz que ama esse alguém, mas depois condena esse mesmo alguém para o sofrimento eterno. Por pior que essa pessoa seja, não consigo acreditar que mereça sofrer eternamente. Existem mães e pais melhores que Deus nesse quesito, pois continuam a amar suas filhas e seus filhos, não importa o que façam. Já o Deus cristão é condicional. “Eu te amo, até mandei meu filho para morrer por você, mas se você não admitir isso e não viver como eu quero, vai sofrer para sempre.” Para mim, isso é doentio. E esse sentimento que tenho já estava se insinuando em meu coração desde minha adolescência.

Não digo que não tive bons momentos “espirituais”. Por exemplo, certa tarde, cheguei em casa com um aperto terrível no peito. Uma angústia sem tamanho. Tinha treze anos. Fui buscar consolo na Bíblia e encontrei a passagem do livro de João em que Jesus promete preparar um lugar na casa de seu pai para seus discípulos. Ele diz para que seus corações não se perturbem. Eu tomei aquelas palavras para mim. Chorei abundantemente. Foi um momento de conexão, confesso. Só que esse momento não apaga uma vida inteira mergulhado em contradições e perversidade.

Finalmente, cheguei à idade adulta. Esse foi o ponto final na minha relação com a igreja evangélica. Conheci muito de perto algumas estruturas, organizações e comportamentos. Vi pessoas queridas serem feridas por atitudes abusivas de pastores e líderes evangélicos. Testemunhei igrejas inteiras assediando jovens moças que não haviam “se guardado” para o casamento.

Lembro-me claramente da última vez que fui a um culto como evangélico. Era um domingo à noite. Eu havia ligado para o pastor, pedindo autorização para não comparecer ao culto. Decidi ser sincero: disse que estava cansado e que havia um livro que eu queria terminar de ler. O pastor reagiu com um nervosismo controlado. Disse que eu não deveria ficar lendo livros ao invés de ir à igreja, que isso iria esfriar a minha fé. Desliguei o telefone resignado e decidido em ir ao culto.

Naquela noite, após o louvor, o pastor foi à frente para fazer o seu sermão. Abriu a Bíblia e leu Atos 2:42. Um versículo sobre perseverar na doutrina dos apóstolos. Após a leitura, voltou-se para o público e começou a falar sobre a importância de não deixar de ir aos cultos. Disse: “Por exemplo, você pode querer deixar de ir ao culto para ler um livro. Se fizer isso, vai esfriar na fé.” Quando ouvi essas palavras, xinguei-o mentalmente. Fiquei tão irritado que naquele momento decidi que nunca mais voltaria àquela igreja.

Passei a dizer que estava procurando outra igreja para frequentar, mas no fundo eu estava cansado disso tudo. Cansado de pessoas dizendo como eu deveria me comportar, como deveria pensar. Estava cansado da hipocrisia, do discurso enviesado, do ódio disfarçado de amor. Os comportamentos de pastores fofoqueiros, manipuladores, que pregavam lindamente mas se comportavam sem ética profissional, líderes de jovens que debochavam dos próprios liderados logo que o culto acabava. Tudo isso envenenou para sempre qualquer visão que eu tinha do cristianismo.

Olhando para trás, penso que talvez eu nunca tenha acreditado. Ou talvez minha fé tenha morrido naquela tarde em Teófilo Otoni, diante de um adulto cruel que talvez acreditasse que estava fazendo um “bem” ao abrir logo cedo os olhos de uma criança. Hoje penso que a fé não é uma escolha, mas um conjunto de fatores. Ser convencido de algo por vezes parece externo. Perceber algo que fica óbvio para nós. Eu não escolhi não crer em Deus. Para mim, pareceu natural.

Aproveito para acrescentar que eu não me considero ateu. Não sou corajoso a esse ponto. Admito a possibilidade da transcendência, do mistério. Afinal, a vida me soa meio absurda e arbitrária. Eu existo porque sim. Isso assusta um pouco. Essa falta de um propósito real na nossa existência. E também nosso fim inevitável.

Por enquanto, busco na escrita e na leitura um certo estofo para me preparar para a vida e para a morte. Sigo como se a literatura fosse minha religião, embora eu não acredite que os livros possam salvar alguém. Ninguém está no mundo para ser salvo. Se estamos no mundo, talvez seja para amar.

Na Bíblia há uma passagem sobre não olhar para trás após escolher o caminho da fé. Em outro trecho, Paulo afirma que “as coisas velhas já passaram” e que “tudo se fez novo”. Esse discurso de negar o passado, apenas olhar para frente me incomoda grandemente. Somos sujeitos históricos. Precisamos aprender sobre o passado. Sei que ele não deve ser determinante, que devemos tomar decisões e nos renovar, que precisamos abrir a mente para novas ideias. Mas apagar tudo o que aconteceu é no mínimo desastroso. “Somos porque lembramos”. Por isso, como a Sankofa, sigo olhando para trás.


sábado, janeiro 25, 2025

Tudo num balaio só

A desonestidade dos "clickbaits" ideológicos e do malabarismo discursivo

Havia acabado de acordar. Por acaso, abri o celular numa conhecida plataforma de streaming de vídeos públicos. Talvez seja a mais difundida e utilizada no Ocidente. Enfim, acabei batendo o olho em uma sugestão de vídeo que prometia abordar as atitudes hipócritas e tóxicas de artistas e celebridades. Bem, até aí, lugar comum. Afinal, todo mundo sabe que vida pública não anda em sintonia com vida pessoal e, por isso, muitas vezes a figura pública pode ter comportamentos até mesmo assustadores. Temos o triste exemplo de um escritor de renome que teve seu lado monstruoso revelado recentemente.

Como não me interesso muito por vidas de celebridades, principalmente cinematográficas, minha atitude inicial seria não clicar no tal vídeo. Acontece que na figura de chamada e divulgação do vídeo, junto à imagem da apresentadora, havia uma colagem de várias celebridades, dentre elas a Fernanda Torres. Acabei fisgado, uma vez que Fernanda está sob os holofotes do mundo e muita gente aqui do Brasil tem declarado sentir um orgulho profundo não apenas pela artista, mas também pela pessoa que ela é. Acabei vencido pela curiosidade.

O que se seguiu, durante a reprodução do vídeo, foi uma apresentadora fazendo autopromoção (até aí, ok, quem na mídia não faz?), propaganda de produtos e discurso ideologicamente enviesado. O perigo e a desonestidade, a meu ver, está aí. A apresentadora, que escolhi não nomear para não contribuir com a tão desejada visibilidade, lista comportamentos problemáticos e tóxicos de alguns artistas que vendem a imagem de pessoas politicamente engajadas, defensoras dos direitos civis e das causas identitárias. No meio disso, ela insere a Fernanda Torres. E qual é o “malfeito” dela? Ser de esquerda. Pura e simplesmente. A bentida apresentadora demoniza uma artista talentosa e consciente por sustentar o discurso de que não deve haver anistia para torturadores.

Nesse momento, fechei o vídeo. Não fui capaz de suportar tal chorume. A apresentadora e dona do canal, que se declara escritora, foi desonesta ao usar a atual visibilidade da Fernanda Torres para ganhar visualizações para o seu canal, enquanto divulga seu pensamento ideológico. Ah, isso não é um problema. Claro que não. Mas aí vai a questão da desonestidade: colocar a imagem da Fernanda Torres junto com outras personalidades que de fato cometeram atos contraditórios ou até mesmo criminosos. 

Sei que a desonestidade e a hipocrisia não tem ideologia. Se a pessoa é progressista ou conservadora não necessariamente vai fazer dela alguém bom ou ruim. Colocar o mesmo rótulo de “hipócrita” e “contraditório” em uma pessoa criminosa e ao mesmo tempo em alguém progressista, isso sim, é uma manobra que considero desonesta. 

Fiquei tentado a comentar no vídeo, mas confesso que temi as reações da “comunidade”. Sabemos como o engajamento no meio digital pode ser violento. Decidi então usar este espaço para um desabafo um pouco desordenado, mesmo que não seja a principal função daqui. 

Enfim, agradeço quem chegou até o final deste texto. E também peço desculpas. Pretendo em breve voltar a publicar aqui minhas resenhas e textos literários. Até mais!